Falar de Estado de Direito e pacificação de comunidades carentes não é e, pela complexidade do tema, não pode ser mesmo uma tarefa fácil. Envolve não só política criminal, como social. Contudo o objetivo do presente artigo, que mais parece um desabafo, é abordar a política criminal empregada no Rio de Janeiro, no que concerne às medidas excepcionais utilizadas nas operações policiais que precedem a pacificação de comunidades carentes. Com base nos fatos ocorridos em algumas localidades como o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro, far-se-á uma análise acerca da legalidade das mesmas.

O Estado, ao realizar operações policiais ou “pacificar comunidades”, não está dispensado de seguir as regras previstas em lei para a investigação e prisão de cidadãos acusados do cometer delitos, ou seja, qualquer medida que vise o combate à criminalidade deve ser praticada sempre, inexoravelmente sempre, sob o manto da legalidade. Neste diapasão, a busca pessoal e a busca e apreensão devem respeitar, da mesma forma que outros institutos, o que prevêem a Constituição Federal e o Código de Processo Penal.

Reza o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou durante o dia, por determinação judicial;”

“O preceito constitucional consagra a inviolabilidade de domicílio, direito fundamental enraizado mundialmente”[1]. Contudo, a própria Constituição estabelece exceções à inviolabilidade de domicílio, quais sejam: 1- durante o dia, por determinação judicial e 2 – durante o dia e a noite, em caso de flagrante delito (na forma do artigo 302 do Código de Processo Penal). Os demais casos citados pela Constituição não se aplicam ao processo penal[2]. A determinação judicial a que se refere o artigo 5º, inciso XI, consiste em um mandado de busca domiciliar na forma dos artigos 240, 241, 242 e 243 do Código de Processo Penal.

Vale, ainda, esclarecer que, de acordo com o artigo 302 do Código de Processo Penal: “Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV- é encontrado, logo após, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração.

No que concerne ao crime de tráfico, tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/06, cabe aduzir que, nas formas expor a venda, ter em depósito, transportar, trazer consigo e guardar[3], é delito permanente[4]. Nas infrações permanentes entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência[5], autorizando, desta forma, a entrada dos policiais no domicílio de quem estiver cometendo tal crime, para prendê-lo em flagrante delito, na forma do artigo 302 do Código de Processo Penal.

É notório que nas operações policiais supramencionadas buscas domiciliares foram perpetradas sem mandado judicial e, maioria dos casos, sem que estivesse ocorrendo um flagrante delito no interior das residências revistadas. Além disto, foram efetuadas buscas pessoais em todos que transitavam nas comunidades ditas “pacificadas” o que, apesar de parte da doutrina entender encontrar fundamento nos artigos 240, §2 e 244 do Código de Processo Penal, serviu, a meu ver, apenas, para perpetuar o estigma que pesa sobre aqueles que habitam as periferias, materializando a visão preconceituosa de que todos que circulam por aqueles becos e vielas são suspeitos. Note-se que a “fundada suspeita”, cláusula genérica, de conteúdo vago e indeterminado, contida no texto do artigo 240, parágrafo segundo, do Código de Processo Penal, herança do autoritarismo de um código datado de 1941, cria inadmissível abertura para o exercício da autoridade por parte dos policiais, deixando espaço para a prática de arbitrariedades por parte dos mesmos. Todas essas medidas vendo sendo legitimadas, lamentavelmente, por uma pretensa necessidade de defesa social, liberdade de locomoção e na famigerada paz social.

Advogar a tese de que há um estado de flagrância abrangendo toda a comunidade que está sendo alvo da operação policial é um absurdo jurídico, com fundamento no próprio conteúdo da norma do artigo 302 do Código de Processo Penal, que, por se tratar de restrição a direito fundamental – liberdade de ir e vir –, é taxativa, não permitindo interpretação de caráter extensivo. Será admissível imaginar-se que todos moradores estavam em uma situação de flagrância, descrita pelo citado artigo 302 do Código de Processo Penal?  Não estarão os governantes agindo como se a situação autorizasse uma espécie de exceção?

As notícias divulgadas pelos meios de comunicação são altamente preocupantes aos olhos daqueles que conheçam minimamente a Constituição Federal. Defender a aplicação de medidas excepcionais fora das hipóteses previstas em lei, legitimando-as com o discurso do combate a criminalidade que ameaça gravemente a defesa social e a ordem pública, significa, com a devida vênia das autoridades, mas sem hipocrisia, fazer uma perigosa exceção à legalidade, o que, em verdade, significa uma exceção ao próprio Estado de Direito, porque, para este, submissão à lei significa acatamento a regras anteriormente estabelecidas[6].

Nunca é demais lembrar que foi em nome da defesa da ordem pública que centenas de “subversivos”, nominados inimigos públicos à época da ditadura militar, foram torturados e mortos. Não há exagero algum na comparação, pois, para muitos, a ameaça da modernidade é a criminalidade que vem da periferia, materializada naqueles jovens pobres acusados de se associarem para comercializar drogas ilícitas, tendo chegado ao  lamentável absurdo de receber o rótulo de crime organizado. E  na guerra contra o crime vale tudo.

Este discurso de defesa social que elege inimigos públicos, verdadeiras encarnações do mal, legitimando ações policiais dissociadas do que prevê a própria lei é uma perigosa armadilha: não existe defesa social, tampouco clamor público,  que possa legitimar a ilegalidade.  Vale relembrar que o AI5 foi instituído justamente para preservar a ordem e a segurança, em nome da defesa social pretensamente comprometida por um processo subversivo revolucionário.

Buscas domiciliares não podem ser efetuadas fora das hipóteses previstas em lei, carecendo, portanto, de determinação judicial (exceto em caso de flagrante delito ou com o consentimento válido do morador), devendo o mandado indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência. Assim, não há em que se falar na possibilidade de um mandado de busca coletivo ou genérico, consistente em uma autorização para que a autoridade policial ingresse em número indeterminado de residências em determinadas localidades, pois haveria uma cristalina violação não só à inviolabilidade de domicílio, como à legalidade[7].

A busca domiciliar é uma grave violação de direitos fundamentais, devendo, portanto limitar-se rigorosamente a forma legal para estar legitimada. “Em se tratando de direito processual penal, e consequente restrição de direitos fundamentais, como é a (in)violabilidade da casa, a forma é garantia inarredável”[8].

Exceções só podem ser aplicadas em consonância com a previsão legal. A exceção à inviolabilidade de domicílio, prevista em lei, exige o estado de flagrância, um  mandado de busca e apreensão ou o consentimento válido do morador. É desnecessário aduzir que o consentimento deve ser prestado espontaneamente e que nulo é o consentimento viciado. Fora disto, a Constituição Federal só admite a supressão desta garantia constitucional nas hipóteses previstas em seus artigos 136 e seguintes, trazendo o Estado de Defesa e do Estado de sitio.  O 1ª decretado pelo Presidente da República, após solicitados pareceres dos Conselhos da República e da Defesa Nacional e o segundo, igualmente decretado pelo Presidente da República, necessitando,  contudo, de autorização do Congresso Nacional[9], hipóteses inocorrentes no Rio de Janeiro. Contudo, quando o tema é favela, parece-me que em nosso Estado tudo é permitido, como se pudessem existir locais onde a exceção é regra e esta não carece de autorização judicial e previsão legal.

Medidas excepcionais que restringem direitos e garantias fundamentais aplicadas em desacordo com a previsão legal, contando com o aval dos governantes, são características típicas de um Estado de Polícia – aquele que é regido pela decisão dos governantes[10] – e não de um Estado de Direito. A aplicação de tais medidas demonstra, cristalinamente, o enfraquecimento do Estado de Direito com o consequente fortalecimento do Estado de Polícia.

No momento em que os governantes autorizam à autoridade policial a agir fora da legalidade, além de suprimir direitos e garantias fundamentais, abrem espaço para a arbitrariedade, porque o ato que não está sob o manto da legalidade é arbitrário. Não foi por menos que foram denunciados furtos, torturas e diversas outras barbaridades, pelos moradores. A título de exemplo vale destacar a denúncia de furto na Vila Cruzeiro, feita por um pastor[11], de dano ao património, de ameaça e constrangimento ilegal [12], sem falar nas atuais denúncias de confisco ilegal de bens realizados por policiais[13].

O agente da lei burla a lei, faz tabula rasa de direitos previstos na Lei Maior em nome da lei, da paz social e da liberdade de ir e vir. Contudo, não existe defesa social quando se burla a lei. O direito de um é o direito de todos, não existe o direito do preso, do acusado ou do suspeito, o que existe é o direito e esse é de todos.  Convenhamos: quem burla a lei para perpetrar uma busca domiciliar sem respeitar os ditames legais, pode burlar a lei para apreender ilegalmente armas, entorpecentes, dinheiro ou, até mesmo, torturar pessoas em busca de supostos foragidos.  Quando o ato, que deveria ser legal, sai da esfera da legalidade adentra a da arbitrariedade e, por mais, que a moralidade pese a consciência de muitos para aduzir que burlar a lei para investigar é completamente diferente de burlar a lei para praticar um ilícito, atrever-me-ei a afirmar que não há diferença. Concordar com tais medidas significa compactuar com uma política criminal totalmente dissociada do que prevê a Carta Constitucional, que, além de tudo, seleciona sua clientela na camada miserável da população.

Medidas excepcionais, que restringem direitos e garantias fundamentais, carecem de autorização legal e devem seguir, de modo inarredável, a forma prescrita em lei, simplesmente porque vivemos em um Estado Social Constitucional Democrático de Direito. “Em qualquer tipo de poder político institucionalizado em forma de estado, o estado de direito e o de polícia coexistem e lutam, como ingredientes que se combinam através de medidas diversas e de modo instável e dinâmico”[14].  O que não pode ocorrer é a permanência de um estado de polícia decretado tacitamente em certos bairros ou favelas, nos quais direitos e garantias fundamentais são suprimidos indiscriminadamente e sem qualquer base legal, com o aval dos governantes de um Estado Social Constitucional Democrático de Direito.

O que deve ser repensado é o tipo de Estado que queremos e o que temos. O Estado de Direito acata as regras anteriormente estabelecidas[15], não tolera arbitrariedades, mesmo que o preço a pagar seja um culpado absolvido, uma busca e apreensão legal frustrada ou uma prisão não realizada. Porque isto é Democracia.


[1] Morais, Alexandre de. In Direiito Constitucional, 22ª ed., São Paulo, Atlas, 2007, p.50.

[2] Jr,  Aury Lopes. In Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, V.I, 4ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009, p. 691.

[3] Nucci, Guilherme de Souza. In

[4] Permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser. Bitencourt, Cezar Roberto, v.1, Saraiva, 10ª ed., 2006, p. 265.

[5] Código de Processo Penal, Saraiva, 6ª ed., 2010, art. 302.

[6] Zaffaroni, E. Raúl. Batista, Nilo. In Direito Penal Brasileiro,  v. I, 3ªed., Rio de Janeiro, Renavan, 2003, p. 93.

[7]Nicolitt, André. In Manual de Processo Penal, Campus Jurídico, 2ªed., 2010, p.471.

[8] Jr, Aury Lpoes. In . In Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, V.I, 4ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009, p. 694.

[9] Moraes, Alexandre de. In  Direito Constitucional, Atlas,  22ª ed., São Paulo, 2007, p. 777 e 778.

[10] Zaffaroni, E. Raúl. Batista, Nilo. In Direito Penal Brasileiro,  v. I, 3ªed., Rio de Janeiro, Renavan, 2003, p. 93.

[12] Disponível em :jus brasil notícia dias 1 e 2 de Dezembro.

[13] Disponível em: http://www.anf.org.br/2011/02/delegado-confirma-saques-em-casas-durante-ocupacao-em-morros-cariocas

[14] Zaffaroni, E. Raúl. Batista, Nilo. In Direito Penal Brasileiro,  v. I, 3ªed., Rio de Janeiro, Renavan, 2003, p. 93.

[15] Ibdem, p. 93.