Somália, 14 de outubro. No pior ataque terrorista de sua história, o país da África Oriental com população de maioria negra e muçulmana se tornou notícia em todo o mundo durante o último fim de semana. Um carro-bomba explodiu no centro da capital Mogadíscio. Um quarteirão inteiro foi arrasado. Mais de 300 inocentes perderam suas vidas. 26 anos de guerra civil, violência e fome produziram muitas imagens chocantes naquele país, veiculadas na imprensa internacional principalmente no início dos anos 1990. Nada disso, porém, criou comoção de longo prazo. A mídia brasileira demorou dias para repercutir o fato, só tendo feito depois de grande comoção nas redes sociais.
Rocinha, 9 de outubro. A foto de José Lucena estampa a capa de vários veículos do país. No dia seguinte a uma violenta noite de tiroteios, em uma série de confrontos que se arrasta há semanas, crianças com uniformes escolares são clicadas de olhos vendados ao passar ao lado de cadáveres ensanguentados em um beco da favela, sob o olhar inclemente de policiais com fuzis sempre em punho. Apesar da repercussão, não havia choque ou pavor em quem passava diante da banca de jornal. Tudo continuava em aparente ordem na república do Rio de Janeiro. Segue o baile.
Na Somália não tem “Je suis”. Nem na Rocinha (ou em qualquer favela da cidade). Dez mil quilômetros distanciam a capital somali Mogadíscio do Rio. Uma via expressa separa a Rocinha de São Conrado, um dos bairros mais ricos da cidade. Mas a indiferença segue a mesma, para cá e para lá. Quase três décadas de conflitos tanto no país africano quanto nas nossas favelas tornaram natural para a sociedade a ideia absurda de que os corpos negros e pobres podem tombar sem maiores problemas. São “baixas de guerra”, fazendo jus ao linguajar da militarização que torna sem solução a violência no Rio. A naturalidade chega à fala do Ministro da Defesa Raul Jungmann, que teve a desfaçatez de afirmar ontem, 17, que tiroteio “infelizmente, faz parte da história da comunidade”.
Está lá no Mapa da Violência de 2016: 57 mil pessoas foram assassinadas no Brasil entre 2015 e 2016. São números dignos de guerra, mas isso também não choca a sociedade. Não tem passeata na Avenida Atlântica. Não tem foto no perfil do Facebook. Ninguém se importa. Nossas tragédias só são estampadas nos jornais ou viram hashtag apenas quando lhes cruzam o caminho. Os conflitos na Rocinha só foram notícia e causaram impacto na sociedade porque se trata da maior favela da América Latina, encravada na região mais rica da cidade. É o mesmo caso do não menos terrível atentado na cidade norte-americana de Las Vegas, ocorrido em 01 de outubro, e que causou horror em tanta “gente de bem” do Brasil, ansiosa por um Green Card made in America.
Do contrário, a mudez permaneceria, como se perpetua diariamente na violência vivida em diversas outras partes da cidade. As histórias se multiplicam todos os dias. Mas nossos mortos e feridos causam indiferença, desconfiança e até um certo alívio – o argumento “tinha passagem pela polícia” sempre é o pai inclemente de toda e qualquer barbárie. Mais de 2/3 das vítimas de assassinatos no país são jovens negros – o tipo “suspeito padrão” já velho conhecido das forças policiais. Entretanto, nessas horas, não tem família tradicional brasileira para defender nossas crianças e o que elas devem ou não ver e vivenciar em suas vidas cotidianas. Na favela, a morte é vizinha.
Os mortos da Somália se reduzem a uma lista – não há detalhes de heroísmo, histórias comoventes, nada que os amplie a algo para além de números. Os corpos tombados nas favelas, muitas vezes, sequer têm nome, apenas antecedentes. São expostos e fotografados apenas para o deleite da massa, sedenta pelo sangue daqueles que julgam inferiores. Quantas vezes ouvimos de cabeça baixa que “tinha que tacar uma bomba nas favelas e matar todo mundo”? Um atentado terrorista de grandes proporções por aqui não faria qualquer diferença para essa gente, que se acha muito diferente de nós. Vale lembrar que as favelas experimentam o terrorismo e a ditadura do Estado todos os dias há mais de 30 anos, seja no pavor cotidiano das máscaras espanta-neném do Bope ou nos carros blindados que atravancam o caminho dos becos e vielas que, para a Garantia de Lei e Ordem (GLO), são eternas ameaças.
A naturalização da tragédia, o racismo e o desdém pela vida nos unem aos irmãos africanos. Somos todos somalis, na mais triste das acepções.