No começo da manhã, fomos surpreendidos com vários estampidos e rajadas estridentes. As balas cortavam o céu do Complexo do Alemão e só paravam nas paredes dos barracos ou do que encontrasse pela frente.
Era 02 de fevereiro, o dia do recomeço do ano letivo para as crianças. Foi decepcionante para milhares delas, que estavam super empolgadas e felizes por seu primeiro dia de aula. Elas tiveram que ficar presas em suas casas. Muitos que saíram com seus pais tiveram que voltar às presas. Quantas cenas tristes presenciei nestes dias – mães se jogando no chão com seus pequenos no meio da rua.
Naquele dia, foram mais de 12 horas de confronto sem interrupções. O saldo foi de várias casas perfuradas, dois moradores baleados, pessoas sem transporte para voltar para casa do trabalho num grande caos generalizado.
Assim que o dia 03 amanheceu, o mesmo caos retornou de forma mais intensa. As rajadas aumentaram e o número de baleados também: subiu para cinco feridos e um morto. Em mais um dia de aula perdido e o pânico instalado, vimos barricadas de fogo e ouvimos disparos em várias partes do morro. Os locais onde os confrontos se concentram recentemente estão na parte alta da favela: Fazendinha, Nova Brasília, entre outros. Nos grupos do WhatsApp dos moradores, só se liam os apelos de socorro e a preocupação com quem estava fora da favela e precisava saber o que estava acontecendo. O “zap” tem sido a nossa única forma de comunicação e sobrevivência diária.
Amanhecemos no sábado, 04, com prenúncio de uma megaoperação e, por conta do sono da madrugada interrompido a tiros, o dia foi de continuidade e intensificação dos confrontos. Mais pessoas sofreram com suas casas perfuradas com os tiros das armas de grosso calibre, e o nosso direito de ir e vir nos foi tirado por mais um dia. Nem pão foi possível comprar. Os armamentos bélicos usados aqui são de dar inveja a qualquer guerrinha na Síria. Até um dos carros blindados veio a tombar devido a forma como entram em locais que não os suportam.
Mediante tudo isso, tenho percebido que o governo não possui uma estratégia de ação efetiva nas favelas. Ele só usa esse tipo de enfrentamento e forma covarde de repressão nos lugares pobres. Mesmo diante de tantas casas e moradores, os disparos são efetuados a esmo, por exemplo. Isso mostra o quanto essa guerra está perdida. O Estado perdeu. Não há respeito.
Os milhões surrupiados pela politica corrupta adotada pelo mesmo governo têm se refletido em ações desastrosas como a que ocorreu aqui no Complexo do Alemão, além do aumento da violência em todo o resto da cidade e de outros municípios. O dinheiro que deveria ser investido em pessoas tem ido pelo ralo em armamentos, munições e operações enxuga-gelo.
As balas que têm sido usadas aqui chegam as milhares e milhares. Alguém está lucrando com isso, e não somos nós. Para os moradores, só restam os prejuízos nas casas e veículos perfurados – sem falar no grande prejuízo mental e psicológico de todos que vivem aqui.
Proponho que o governo, com a sua falida política de (in) segurança se retire, recue, vá embora. Durante todo esse tempo aqui, gastou-se milhões e as coisas seguem do mesmo jeito. É vergonhoso. Insistir nisso é desperdício de ainda mais dinheiro.
Retire sua UPP daqui e volte com Inteligência. Volte com escolas boas e com professores bem renumerados, que tragam de volta tudo aquilo que nos roubou: o sonho de um dia termos furado a bolha. Volte com as oportunidades, como no caso do PAC, tão anunciado e já tão abandonado.
Os verdadeiros traficantes usam a influência financeira e política que têm. Os verdadeiros bandidos que conheço só vejo pela TV. Muitos deles não moram aqui. Frequentam rodas importantes, decisivas e as suas intervenções maculam a vida de muitas pessoas. São ricos e poderosos.
Peço que parem com essas operações inúteis e que se posicionem nas divisas do Estado, fiscalizem a Baía da Guanabara, coloquem escutas telefônicas nos grandes escritórios de negócios do Centro e nos apartamentos da Vieira Souto. Parece ufanismo, mas esta, sim, é a forma mais eficaz de coibir o tráfico de drogas no Rio de Janeiro – e nos deixarem, enfim, livres.