Maurilio Lima Botelho: “O Rio se tornou um dos focos mundiais de investimentos financiados em dívida com perspectiva de realização futura, mas sem uma base real”
Na segunda parte do Dossiê: Olimpíadas x Favelas, a Agência de Notícias das Favelas entrevista o geógrafo Maurilio Lima Botelho, professor de Geografia Urbana na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que discute a relação entre capital financeiro e transformações urbanas, focando a experiência carioca dos últimos anos e aproveita para apontar como o processo atual de reestruturação urbana afeta as favelas da cidade. Com artigos publicados sobre a relação entre crise urbana e favelização, é um dos colaboradores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (2013).
ANF – Como se estabelece a relação entre capital financeiro e transformações urbanas no Rio de Janeiro?
Maurilio Lima Botelho – Isso ficou mais evidente graças aos megaeventos, mas o vínculo entre capital financeiro, ficcionalização da riqueza e produção do espaço urbano se aprofundou com as mudanças que ocorreram na época do primeiro governo Lula, principalmente com as possibilidades abertas pelo Estatuto da Cidade. Foi instituída a operação urbana consorciada, ou seja, a possibilidade de usar títulos, como os CEPACS (Certificados de Potencial Adicional de Construção) que possibilitam o financiamento da revalorização de determinadas áreas da cidade – os processos de “gentrificação” – através da emissão de títulos do mercado imobiliário. Esses títulos vão circular no mercado financeiro e, a partir disso, é possível juntar recursos para dar início ao processo de reestruturação urbana. Os CEPACS são o principal embasamento financeiro para essa reestruturação. Quem compra ganha o direito de construir acima do gabarito permitido nas áreas definidas pelo título. É uma forma legal de driblar a própria legislação urbana. No Rio, isso acontece com o projeto Porto Maravilha, que é basicamente uma privatização da área portuária, desde a limpeza, contratada pelo consórcio de construtoras que ganharam a licitação, até a vigilância privada. Tudo isso é lastreado em títulos que inicialmente seriam jogados no mercado financeiro para o Estado conseguir financiar seu projeto de reforma – portanto, um projeto privado, sem recursos estatais –, mas que só saiu do papel graças à compra dos títulos pela Caixa Econômica Federal. Depois, a Caixa começou a vender esses títulos sem reaver o que foi investido. Toda esse financiamento foi baseada no endividamento público, na participação dos fundos de pensão e bancos estatais. Mesmo assim, a “revitalização” não teve o efeito esperado: vários projetos estão parados e algumas ideias então formuladas para as Olimpíadas, como o centro de mídia, foram realizadas em outros locais. O Porto Maravilha parece um desses empreendimentos financeiros cujo futuro não se concretizou. Esse é o exemplo mais evidente de todos, porque é a maior operação urbana consorciada do Brasil, maior até que o novo centro financeiro de São Paulo, que é um projeto mais antigo e que serviu de modelo para o Estatuto da Cidade. Antes disso tudo, no entanto, já ocorria uma financeirização do processo de revitalização urbana na Lapa, que é tradicionalmente uma área central mais degradada do ponto de vista dos grandes interesses econômicos. Há muito tempo, o governo estadual tenta resgatar essa área, que tem um grande potencial de expansão para o centro financeiro. Mas o processo só deslanchou na virada do século, quando recomeçaram os lançamentos imobiliários na Lapa, financiados por fundos de pensão estrangeiros, por fundos de investimento árabes e também grandes prédios para expansão dos escritórios da Petrobras.
O Rio protagonizou nos últimos anos as maiores remoções da sua história.
ANF – E o papel dos megaeventos?
Maurilio Lima Botelho – O que tem ocorrido em todo o mundo é uma vinculação da urbanização a projetos momentâneos de grandes eventos, embora a reformulação urbana do Rio vá além disso. Essa sequência de megaeventos por aqui serve como um desencadeador do projeto mais amplo de reestruturação urbana. O Rio se tornou um dos focos mundiais de investimentos financiados, na maioria das vezes, com recursos públicos baseados em dívida ou em instrumentos financeiros com perspectiva de realização futura, mas sem uma base real. Os grandes eventos permitem esse tipo de investimento porque eles sempre têm uma meta a ser alcançada, que é criar a infraestrutura para um novo evento. No Rio, tivemos uma sequência de eventos quase anuais: Jogos Pan Americanos, Jornada Mundial da Juventude, Jogos Militares, Copa do Mundo e agora as Olimpíadas. O Pan de 2007 foi o ponto inicial, mostrando que a cidade tinha condições de realizar os grandes eventos. Existe uma lógica mundial, mas que, no Rio de Janeiro, se tornou muito mais visível, que é essa necessidade de criar alianças entre vários setores, como o mercado financeiro, as construtoras, o setor de transportes e grupos políticos. Até mesmo políticos de oposição começaram a se integrar por causa das oportunidades criadas pelos eventos. Tudo isso está se desfazendo com a crise econômica e política. Essa aliança suprapartidária momentânea formada em torno dos megaeventos e da reestruturação urbana permitiu inclusive que medidas de exceção e segregação, principalmente as políticas autoritárias de remoção, fossem levadas a efeito. O Rio protagonizou nos últimos anos as maiores remoções da sua história.
ANF – Você tem publicado sobre a crise urbana e o processo de favelização no Rio de Janeiro. Fale um pouco dessa relação.
Maurilio Lima Botelho – Há uma “crise urbana” bastante longa no Brasil, pelo menos, desde a crise do modelo de desenvolvimento – ou talvez até antes, porque o desenvolvimento periférico foi baseado numa hipertrofia do setor terciário. As cidades cresceram de forma muito acelerada e sem as condições para receber essas populações. Essa urbanização acelerada provocou distorções urbanas e sociais gravíssimas. Há um déficit habitacional gigantesco. Tudo isso explodiu durante a crise do modelo de desenvolvimento, no final dos anos 1970. Com a “década perdida” de 1980, a crise urbana e a crise fiscal se ampliaram. Houve uma redução completa das políticas habitacionais. Na década de 1990, que foram os anos neoliberais, a situação só piorou. Aqui esse histórico é mais grave porque, mesmo com a redução do crescimento populacional – hoje a população do Rio cresce muito pouco, é quase estável -, a cidade não foi capaz de deter o processo de favelização. A ampliação do número de moradores de favelas continuou a crescer durante o período em que ocorreu uma redução do crescimento urbano. Isso significa um crescimento absoluto da favelização na cidade. Durante o primeiro e o segundo governo Lula, a situação não melhorou. Se pegarmos, por exemplo, as pesquisas do Marcelo Neri, que foi o principal defensor da teoria da “nova classe média”, elas apontam que ocorreu uma diminuição da pobreza absoluta em termos nacionais, mas o mesmo não aconteceu no Rio. Mesmo nos anos de crescimento do governo Lula, foi grande o processo de empobrecimento da cidade. Nesse longo período de crise, ocorreu uma mudança nas políticas urbanas: acabou a ideia de uma grande reforma urbana. Embora o prefeito atual (Eduardo Paes) queira ser lembrado como um novo Pereira Passos, o que temos hoje são reformas pontuais em determinadas áreas da cidade onde ainda há algum crescimento de infraestrutura, como na Barra da Tijuca e Recreio. Não se pode falar em reforma ampla. O Porto seria um dos poucos exemplos disso, mas ainda não mostrou resultados.
ANF – Como essa mudança na ideia de um grande planejamento urbano repercute no problema habitacional?
Maurilio Lima Botelho – Ocorreu uma crise dessa ideia de planejamento amplo e isso afetou também as políticas habitacionais. Desde o início dos anos 80, foi abandonada a ideia de construir moradias para as populações das áreas favelizadas ou em áreas de risco. Passamos a ter políticas de urbanização das favelas, iniciadas no governo Brizola, e, depois, os mesmos técnicos fizeram o Favela-Bairro, que foi um projeto de reforma com grande repercussão. O conceito central do Favela-Bairro era a urbanização simplificada, um “urbanismo mínimo” em termos de investimento, mas que aproveitava o que os próprios moradores faziam de forma espontânea e oferecia apenas algumas melhorias. Hoje, essas melhorias estão sendo questionadas: a Rocinha, que nem é mais considerada uma favela – oficialmente ela é um bairro -, continua tendo uma taxa de tuberculose oito vezes maior que a média nacional. As dificuldades relacionadas às vielas apertadas, com pouca circulação de ar, esgoto a céu aberto, tudo isso produz efeitos que a urbanização das favelas não resolveu.
Acabou a ideia de uma grande reforma urbana, embora o prefeito atual queira ser lembrado como um novo Pereira Passos.
Com essa nova etapa dos megaeventos, numa conjuntura política favorável aos investimentos de peso em determinadas áreas da cidade, havia a necessidade de reduzir o impacto da favelização em alguns lugares. Então, nas ditas áreas nobres da cidade, ou seja, o Centro, a Grande Tijuca, Zona Sul e Barra da Tijuca, a ideia de urbanização simplificada, de pequenas melhorias, ficou de lado e ocorreu um regresso às políticas de remoção. Onde há populações indesejadas, que atrapalham os negócios, ocorre uma retomada da remoção. Só que, em vez de uma política ampla de reassentamento em locais próximos, aconteceu um deslocamento para as áreas mais afastadas. Algumas pesquisas recentes mostram onde foi parar a maior parte das pessoas removidas do centro da cidade, da Zona Sul, das favelas próximas ao Maracanã; eles estão indo morar a dezenas de quilômetros de distância dos locais originais, onde construíram sua sociabilidade, laços de vizinhança, desenvolveram pequenos negócios. Essa nova política habitacional, também financiada com recursos públicos, representa uma mudança em relação ao período de desmonte do Estado planejador: voltamos a ter um programa habitacional, mas ainda voltado para o segmento de renda média, com um percentual pequeno voltado para a baixa renda. Os empreendimentos voltados para a baixa renda reassentam a população removida das áreas nobres para não atrapalhar os grandes eventos e se localizam sempre nos terrenos mais baratos das periferias. Aí a gente tem, por outro lado, uma política de transporte que segmenta a cidade e impede que essas pessoas acessem diretamente as áreas nobres.
ANF: Existe relação entre o aumento da desigualdade social no Rio e o encarecimento do custo de vida por causa dos megaeventos?
Maurilio Lima Botelho – É muito provável que exista essa relação. O custo de vida no Rio de Janeiro se elevou de uma forma gigantesca nos últimos anos e a cidade se tornou uma das mais caras do mundo. O critério de renda adotado pelo governo para dizer quem está na pobreza absoluta é baseado na cotação do dólar. Pobreza absoluta, segundo várias instituições internacionais, é quem vive com menos de um US$1 por dia, mas, como o câmbio é variável, é possível tirar um monte de gente da situação de pobreza apenas com uma alteração do câmbio. Foi mostrado há alguns anos que o governo usava critérios que partiam da fixação já ultrapassada do câmbio e isso permitia retirar 20 milhões de pessoas da extrema pobreza. Mera falsificação de dados…
ANF – Quando a ONU declara que o país saiu do Mapa da Fome…
Maurilio Lima Botelho – Eles seguem os dados oficiais do governo. Há muitas contradições ai. Muitas pesquisas universitárias, além de movimentos sociais, têm mostrado o aumento da favelização, mas os dados da ONU seguem os dados oficiais, nos quais aparece, pelo contrário, um combate à favelização. Nas estatísticas de governo e da Prefeitura, o Rio diminuiu o número de favelas. Isso acontece simplesmente porque várias favelas foram formalmente transformadas em bairro com a urbanização ou, como no caso da Maré, complexos de favelas foram considerados como uma favela só.
As milícias hoje são também empreendedoras imobiliárias. Elas não apenas ocupam prédios dos programas do governo, mas constroem seus próprios imóveis, sem qualquer regularização.
ANF – E qual é o papel do empreendedorismo na urbanização das favelas?
Maurilio Lima Botelho – Uma das questões relacionadas ao urbanismo simplificado, que foi uma estratégia do neoliberalismo na década de 1990, era o governo estimular aquilo que já aparecia nas favelas, um aproveitamento do mercado informal das favelas. A tentativa de regularização dos imóveis deveria estimular ainda mais isso. A entrega de títulos de propriedade é parte da ideia de criar mercados, estimular o potencial econômico. A partir do momento em que há um título de propriedade, é possível pegar crédito, virar fiador; as pessoas passam a ter uma base econômica regularizada que pode ser oferecida no mercado. Um teórico que se tornou referência para o Banco Mundial, o economista peruano Hernando de Soto, dizia que o mundo poderia fazer uma grande distribuição de riqueza se os terrenos e casas dos moradores de favelas e periferias fossem regularizados. Aquela riqueza, a terra, a propriedade imobiliária que está ali, mas não pode ser mobilizada na forma de dinheiro ou de capital, ficaria disponível para os pobres. Então, na década de 1990, houve um grande estimulo à regularização e foi realmente criado um mercado potente. Mas um dos resultados dessa regularização tem levado a uma espécie de “gentrificação”. É verdade que sempre houve compra e venda de terrenos ou casas em favelas. Existem relatos de que as primeiras favelas se iniciaram com alugueis de terrenos, mas isso foi se ampliando nas últimas décadas e estimulado ao máximo pelo urbanismo simplificado. Para isso contribuíram tanto a regularização oficial por parte do governo, quanto a exploração mafiosa desse mercado em algumas áreas da cidade. As milícias hoje são também empreendedoras. Elas não apenas ocupam prédios dos programas do governo, mas constroem seus próprios imóveis, sem qualquer regularização. Em alguns bairros da cidade, isso seria um escândalo, mas na Zona Oeste acontece livremente. A milícia se aproveitou desse mercado e se tornou a principal beneficiária da política de mercantilização nas favelas.
ANF – Você tem uma pesquisa sobre as favelas na história do pensamento geográfico. Pode falar um pouco sobre isso?
Maurilio Lima Botelho – Do ponto de vista da geografia brasileira, as favelas se tornaram um foco de estudos apenas nos últimos trinta anos. A Geografia começou a ser mais influenciada pelo marxismo e ganhou força uma geografia crítica, muito interessada nos conflitos sociais. A partir daí, a favela se torna um dos objetos de análise. Um dos meus interesses era saber por que isso não acontecia no passado. Mas uma das coisas que descobri é que há 50 ou 60 anos já havia estudos de geógrafos e também de autores de outras áreas que faziam uma análise da favela a partir de elementos geográficos. Um dos primeiros estudos sistemáticos foi feito por vários pesquisadores ligados à Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS), entre os quais havia alguns geógrafos. O geógrafo e padre francês Lucien Parisse também escreveu um dos primeiros grandes livros sobre a favelização no Rio de Janeiro (Favelas do Rio de Janeiro: Evolução – Sentido) e desenvolveu naquela época muitas conclusões que já coincidem com a nossa visão atual. Por exemplo, mostra que, dependendo da conjuntura política, o tratamento dado à favela pode privilegiar a urbanização ou a remoção. Ele mostra que a favela foi tolerada, até mesmo nas áreas nobres, porque ela é funcional para a cidade. Ela alimenta a classe média e as elites com força de trabalho sub-remunerada. Isso mostra que existem estudos clássicos pouco conhecidos que já davam conta dessas questões.
A favela provoca toda essa cólera porque a sua situação na paisagem urbana denuncia o sistema econômico e político que a cria.
ANF – E qual foi a descoberta mais interessante?
Maurilio Lima Botelho – Há vários pontos interessantes que ajudam a lançar luz sobre problemas ou debates que vivemos hoje. Um desses pontos interessantes é que, nesse livro do Lucien Parisse, ele descreve e polemiza com a opinião da imprensa sobre a favela. Um bom espaço é dedicado às reportagens e opiniões emitidas pelo “Jornal O Globo”, que fazia eco ao ódio de Carlos Lacerda contra as favelas. Uma das reportagens publicadas em “O Globo”, em 1952, fala da “doença, vergonha e crime que são as favelas”. Embora tenha maneirado nos termos, nos últimos anos os editoriais desse jornal têm insistido que a “urbanização de favelas” é uma falácia e abertamente apoiado às remoções. Seria interessante lembrar aqui o diagnóstico de Parisse: a favela provoca toda essa cólera porque a sua situação na paisagem urbana “denuncia o sistema econômico e político que a cria”.
* Colaborou André Fernandes.