*Por Rafael Huguenin
Neste final de novembro de 2010, a sociedade assiste, estarrecida, uma onda de violência e terror se espalhar pela cidade. Em meio a tiroteios, veículos queimados, inocentes mortos e feridos, a população vê com alívio uma reação contundente das forças do Estado, que retomam, com grande aparato bélico, territórios que há anos estavam fora de seu controle. Anos de tirania, opressão, violência contra o trabalhador inocente e, principalmente, a reprodução, em escala comunitária e por meios violentos, de uma prática de exploração que também é praticada em outras escalas e por modos mais sutis por nações e grandes grupos empresariais, justifica não apenas o grande aparato militar, mas o apoio de boa parte da população, sobretudo das classes média e alta. Ainda que os acontecimentos, maximizados em dimensão e dramaticidade pela mídia, encorajem uma análise simplista e maniqueista, que identifica claramente o Bem e o Mal, faz-se necessário pensá-los com profundidade.
Para isso, pensar com profundidade a realidade que nos cerca, toda ajuda é necessária. E onde poderíamos encontrar o melhor tipo de ajuda, em termos de profundidade e seriedade, senão nos grandes pensadores da história, nos chamados pensadores clássicos? Não se trata aqui de adotar esta ou aquela teoria ou este ou aquele pensador, mas evitar os riscos de interpretar os fatos a partir do senso comum ou do que a mídia, sempre produzindo no calor do momento, veicula. Neste ponto, alguns conceitos elaborados por Karl Marx podem nos auxiliar. Antes, porém, delimitemos o problema a ser tratado por meio de algumas perguntas. Quais são as causas da barbárie? O que leva uma pessoa a reivindicar violentamente territórios, utilizando-o como base para ações criminosas e tomando posse dos serviços públicos e da comercialização de certos produtos naquela área? O que leva, enfim, os homens, seja por violência explícita ou implícita, a oprimirem outros homens?
A resposta mais simples, típica do senso comum, consiste em atribuir a certos indivíduos uma personalidade de má índole e um caráter duvidoso. No entanto, ainda que este fato explique certas ações criminosas individuais, ele não é capaz de explicar, por si só, certos casos de opressão e violência generalizada e prolongada, conforme é possível observar não apenas no Rio de Janeiro nesta segunda metade de novembro de 2010, mas, em uma escala menor, em quase todas as comunidades carentes da América Latina. Neste ponto, para compreendermos melhor o que está acontecendo, temos que relacionar de alguma maneira os acontecimentos recentes não com alguma característica subjetiva ou mental de certos indivíduos, como se fossem desvios de caráter em larga escala, mas com algumas circunstâncias que, de algum modo, sejam comuns a muitos indivíduos. Segundo Karl Marx, estas circunstâncias se identificam com as condições materiais objetivas a partir das quais emergem não apenas as consciências individuais, mas toda a estrutura social.
De acordo com o Materialismo Histórico, doutrina desenvolvida por Marx, a conduta geral dos homens, a organização social, as relações jurídicas e as formas políticas que constituem a sociedade não podem ser compreendidas em si mesmas, ou seja, não podem ser explicadas apenas como ideias eternas ao estilo platônico ou mesmo como um mero resultado do desenvolvimento geral do espírito humano. Devemos ter em mente que, para sobreviverem, os homens são obrigados a estabelecer inúmeras relações sociais. Estas relações se dão em vários níveis e são necessárias, determinadas e independentes das vontades individuais. Estas relações, tomadas em sua totalidade, constituem a estrutura econômica da sociedade, sobre a qual se apoiam as formas jurídicas, políticas, sociais e, a partir destas, as próprias consciências e a maneira de encarar o mundo dos indivíduos. Daí a célebre fórmula de Marx, segundo a qual “O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência do homem que determina a sua existência, mas sua existência social que determina sua consciência”. Nesta perspectiva, a consciência, os valores humanos e as formas de comportamento são determinadas pelas condições materiais e econômicas.
E quais seriam estas condições materiais e econômicas? Qual a relação delas com este novembro sangrento? Aqui, tocamos em outros aspecto crucial do pensamento de Marx, a Luta de Classes, razão de tanta desigualdade e sofrimento, segundo a qual a sociedade se divide em dois grandes grupos desproporcionais e antagônicos no jogo social: a burguesia e o proletariado. Por razões óbvias, as ideias e o imaginário de toda a população são determinados pela classe dominante, uma vez que a mídia e a maioria dos órgãos de imprensa tradicionais são propriedade da burguesia e o sistema educacional público, na maioria dos casos, exerce apenas a função de formar a mão de obra barata do futuro. Deste modo, expostos à confirmação midiática de um padrão de vida burguês, impossível de ser adotado por toda a população e que gera desigualdade, sofrimento e a busca desenfreada deste padrão mesmo, como se fosse a única maneira de ser feliz, não é de se espantar que muitos indivíduos reproduzam dentro de suas áreas de ação a prática mesma que garante a própria sustentação da elite, ou seja, a exploração do homem pelo homem.
Levando em conta estes fatos, podemos encarar a invasão das forças do estado e a ocupação dos traficantes como duas faces da mesma moeda. Ambos são frutos de uma vontade de poder irrestrito, de busca incessante de lucro e riqueza e de individualismo que caracterizam todas as organizações e instituições no sistema político vigente. A diferença reside nos métodos utilizados e na abrangência do campo de atuação. De um lado, nas favelas e em ações relâmpago pela cidade, vemos organizações praticamente tribais, baseada em princípios organizacionais rudimentares e que utilizam a violência explícita como instrumento de poder e dominação. Do outro lado, em um plano global, temos uma amálgama de organizações, de instituições governamentais e de grupos comerciais e empresariais de todos os tipos, todas imbuídos da mesma mentalidade capitalista, mas que, por se utilizarem de métodos muito mais sutis e compartimentados de exploração e dominação, não precisam lançar mão constantemente da violência, senão em casos como este, nos quais as favelas, dominadas por organizações quase tribais, são vistas como mercados ainda não explorados e como fonte de impostos ainda não embolsados pelo Estado.
Há quem diga que a guerra não termina nunca, apenas muda de lugar. Se quisermos vencer realmente esta guerra, temos que fazer um grande esforço para modificar as mentalidades. E, de acordo com o materialismo histórico, isso só é possível se modificarmos as próprias estruturas sociais objetivas a partir das quais se formam as mentalidades mesmas. Ou alguém acha que é possível ocupar todas as favelas e comunidades carentes da América Latina?