Quarta-feira, 10, ônibus 006 (Castelo- Silvestre), alto de Santa Teresa. Bem na hora do rush – sim, Santa Teresa tem rush -, uma discussão entre duas mulheres causou a maior confusão. Uma mulher branca e uma criança ocupavam dois lugares até chegar uma mulher negra grávida, pedindo para sentar. A outra, contrariada, colocou a filha no colo e seguiu reclamando.
As reclamações eram respondidas pela grávida. Era inevitável não reparar na situação atípica, quando duas mulheres discutiam lado a lado. A mulher branca reclamava, aumentando o tom de voz, quando a mulher negra, saturada, respondeu: “Você é uma maluca! Pronto!”. Estava formada a confusão.
A mulher branca gritou repetidas vezes: “Você é uma mulher feia!”, “Sem argumentos, não há retórica, estamos vivendo um golpe de estado, o Brasil é governado por um golpista, Michel Temer. E você vem falar de direitos!”, “Eu uso dois bancos, sim, na hora que eu quiser, isso aqui é o Brasil, é cada um por si. Agradeça que eu te dei o lugar. Fica quieta aí, você não tem argumentos, conhecimentos para discutir comigo”, “Você é feia!”. A mulher negra respondeu com uma dedada na cara: “Você está me tirando de otária? Vamos descer para resolver isso! Sua maluca!”, enquanto a branca respondia: “Você não tem argumentos, você é feia!”.
Como a mulher branca insistia nisso, as pessoas que antes se compadeciam por ela ter uma criança pequena, já percebiam que se tratava de um caso de racismo. Do fundo do ônibus, um passageiro gritou: “Isso já é racismo! Essa mulher veio a viagem toda reclamando, arrumando confusão, agora está de racismo. Se for para delegacia, eu sou testemunha! Racismo não!”. Logo, o ônibus todo percebia a gravidade dos fatos e se oferecia de testemunha. Encontraram um lugar pra grávida sentar e deixaram a mulher com a criança sentada sozinha, mas ela seguiu ofendendo: “Você não tem argumentos, conhecimentos, retórica. Você não passa de uma mulher feia!”.
No meio da confusão, tive que descer do ônibus. Segui para meu trabalho pensando que estava vivendo os tempos da segregação racial nos EUA de 60 anos atrás. O discurso da mulher com criança no colo era o da esquerda antigolpista. Contudo, descambou para atos que todos entenderam como racismo pelas palavras e ações dela.
Essa divisão da esquerda não vem de hoje. Lendo o livro 400×1 – uma história do Comando Vermelho, de William da Silva Lima, o famoso “Professor”, percebemos que há divisões de classe, raça desde sempre no movimento. A obra traz relatos do preso em plena década de 1960, contando que, neste período, diversos grupos de combate à Ditadura, chamados de subversivos, estavam no presídio de segurança máxima da Ilha Grande. Em geral, eram jovens brancos da classe média, estudantes secundaristas e universitários, que seguiam as teorias comunistas. Quando eram presos, se recusavam a viver com os mesmo direitos dos presos comuns, os chamados de “presos proletários”, que, por sua vez, chamavam os subversivos de “pequenos burgueses”. Ou seja, pregavam a luta do proletariado, mas sem a participação e o convívio com os pobres.
Parece incoerente, mas é verdade. Ainda como no dia de hoje, muitos daqueles que lutavam pela criação do Estado Proletário não estavam dispostos a viverem com os proletários, os pobres, os negros.