Estou cabreirão faz uns dias, desde que lembrei (lembro todo ano) que o rapper Sabotage foi assassinado na véspera do aniversário de São Paulo, dia 24 de janeiro. Desta vez, lembrei porque minha filha pediu para colocar um rap dele no carro. “Gosto dessa música”, disse Clarice. Fui à internet e conferi: fazem 20 anos.

Não, este texto não é para repetir o clichê de que “ele se foi, mas sua obra continua viva”. Ela é pulsante desde a primeira rima, desde a primeira batida, e continuaria sendo notável com ele morto ou vivo. A diferença é que poderíamos ter ouvido mais, muito mais.

Fico triste pela morte, pela forma brutal como aconteceu, a tiros, e por imaginar o quanto ele estaria produzindo. Isso de agradecer pelo que poderia ter sido e não foi passa o pano para a nossa histórica incapacidade de atingir a plenitude.

É como se devêssemos agradecer a existência de favelas porque dela, afinal, saem tantos talentos… É como se fosse o caso de agradecer aos garimpeiros por nos chamarem a atenção ao genocídio indígena. É como tantas outras histórias interrompidas que devem ser lamentadas, não comemoradas por terem existido pela metade.

A morte de Sabotage – aos 29 anos! – é uma perda irreparável para a música, para a cultura brasileira, e, considerando a abrangência global da cultura hip hop, uma catástrofe mundial. Perder alguém como o maestro do Canão, da forma como aconteceu, regride nossa história em muitos quilômetros, atrás da estaca zero. Ficamos no negativo.

Sabotage é a encarnação do rap, da malandragem, da favela, da alegria, do crime, da criatividade, da negritude. E como estarão seus filhos, sua viúva? Alguém aí sabe me dizer? Tenho até medo de saber. Confesso que comecei a ver o documentário sobre sua vida e desliguei no começo. Travei. Pensei em falar da biografia escrita por Toni C, mas nem peguei na estante. Percebi que o sentimento é mesmo de tristeza.

Sei que talvez fosse o caso de uma homenagem, algo alto astral, amanhã é feriado em São Paulo, quem quer ficar triste? Mas Jão, atenção: a gente não pode esquecer, nem contemporizar as perdas importantes. Não é arrumando desculpas que vamos arrumar o país. Precisamos criar vergonha na cara e encarar de frente a realidade dos fatos: perdemos todo dia gênios como Sabotage e essas perdas pesam, fazem MUITA falta para a construção de uma nação melhor.

Outra coisa que me incomoda: Sabotage conseguiu mais fama do que fortuna, o que eu acho uma puta sacanagem. Pergunto pra Deus: não tinha como esperar mais um pouquinho para, pelo menos, juntar um saldo maior na conta bancária? Um saldo que pudesse garantir o futuro dos filhos, da viúva, tirar a família da favela? Alguém sabe se eles ainda estão lá? Tenho até medo de saber.

Ninguém vai me convencer de que a gente deve se acostumar a perder aquilo que temos de mais valioso. Se isso acontece, ficamos como? Ficamos como aquela seleção de futebol que fez o gol mais belo da Copa, que fez um gol na prorrogação, mas tomou outro logo em seguida? Ficamos com o que sobrar da Amazônia, dos índios? Ficaremos com o resto da democracia?

É assim que se faz um país pela metade. Ou menos.

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