Em 1989, com o enredo “Ratos e Urubus, larguem minha fantasia”, uma criação de Joãozinho Trinta, a Beija-Flor de Nilópolis mudou a história do desfile das escolas de samba. O carro abre-alas, ao invés do luxo e esplendores das alegorias, trazia mendigos envoltos em trapos e sacos de lixo. A imagem do Cristo Redentor coberto por um plástico preto, carregando uma faixa com os dizeres “Mesmo Proibido, olhai por nós” (a alegoria original havia sido “vetada”pela arquidiocese do Rio de Janeiro) arrancou aplausos e lágrimas da multidão. Vale lembrar que embora tenha sido o desfile mais impactante do ano, e entrado para a história, a Beija-Flor ficou em segundo lugar naquele ano. A escola vencedora foi a Imperatriz Leopoldinense, com um desfile mais convencional, e o belo samba-enredo “Liberdade, Liberdade, abra as asas sobre nós”.
Nos anos 80, o carnaval era muito mais politizado na Marquês de Sapucaí. Em 1988 a Vila Isabel ganhou o carnaval com “Kizomba, a Festa da Raça”” imortalizando o “Valeu, Zumbi”, de Martinho da Vila. Era o centenário da Lei Áurea, e a Mangueira arrebentou (mas não levou) com um samba enredo sobre a escravidão, há exatos 30 anos atrás, assim como a Tuiuti em 2018: “Será / que já raiou a liberdade/ ou se foi tudo ilusão…”. Referências aos pacotes econômicos da época ( “apertaram o gatilho do salário baleado / outra piada depois desse tal cruzado”, Unidos da Tijuca em 1988), aos anos da ditadura e a perspectiva da recente democratização (“Me dá me dá /me dá o que é meu / foram 20 anos que alguém comeu”, Império Serrano em 1986). Se temos algo a comemorar neste carnaval, é o fato da temática política ter voltado com força aos enredos, e os primeiros lugares foram ocupados pelas escolas que foram mais explícitas nesta abordagem do grave momento político e social que vivemos no Brasil.
O desfile da Paraíso do Tuiuti foi épico, entrou para a história. Ao tratar da escravidão de todos os tempos, fazendo analogia entre os escravocratas de ontem e os “neotumbeiros” da política nacional, colocando o Temer de vampiro, os patos da FIESP, a retirada dos direitos trabalhistas… ver a Tuiuti falando e mostrando tudo que está entalado na nossa garganta para milhões de espectadores em todo o mundo, constrangendo e silenciando os comentaristas da Globo, lavou a nossa alma. Fora isso, nunca se ouviu tanto “Fora, Temer” na programação da Globo quanto durante a transmissão da apuração do desfile. Ficou impossível deixar de fazer essa referência, ao vivo e nas reportagens veiculadas em rede nacional. A Tuiuti é uma escola pequena, com pouca tradição entre as grandes do Grupo Especial, e o seu segundo lugar tem um gosto inevitável de vitória, assim como foi com a Beija-Flor em 1989. Os papéis se invertem, mas o significado é muito parecido.
Com a Beija-Flor, a Globo ganhou um “enredo social” pra chamar de seu: politicamente bem comportado, com referências genéricas à corrupção e à impunidade, uma leitura mais senso comum e conservadora da crise brasileira. Mas é preciso ler mais além do discurso direto, e entender que a vitória da Beija-Flor reforça o sentido de politização, que marca a retomada do desfile das Escolas de Samba enquanto espaço de apresentação e crítica dos grandes temas nacionais. E o carnaval da Sapucaí é arte, espetáculo, onde a linguagem é tão mais importante do que a mensagem. Neste sentido, é preciso entender e aprender com a Beija-Flor, que está sempre trazendo inovações estéticas importantes para o carnaval. Nos últimos anos tem aprofundado a teatralização do desfile, investindo na performatividade dos componentes, nos carros e nas alas. A maior parte das escolas já faz isso em comissão de frente ou alas. Mas roteirizar um desfile inteiro, como fez a escola este ano, é uma reinvenção da ópera carnavalesca de importante dimensão. O samba-enredo da Beija-Flor estava lindo, e o espetáculo do povo, invadindo a pista no final do desfile, foi apoteótico.
Querer criar um conflito ou apontar as contradições entre Beija-Flor e Tuiuti é pouco inteligente e estratégico, nesse momento. Melhor celebrar, na vitória de ambas, a retomada de um sentido mais político e inteligente para os enredos de Escola de Samba. Comemorar o fato de que o desfile da Sapucaí volta a ser uma arena do comum, do debate público, trazendo à tona as questões políticas e sociais do país. Foram anos de enredos patrocinados, feitos sob encomenda, com temas que iam da floração do maracujá à homenagens de pouca relevância, e por maior que fosse o esforço criativo dos carnavalescos, não despertavam o interesse nem o debate público. Esse ano, as Escolas de Samba voltaram a ser assunto, chamando a atenção da sociedade e, essa sim, é a maior vitória do carnaval de 2018.
Por fim, existe a politização do carnaval, como tema e narrativa, mas existe, também, a política do carnaval, e essa, muitas vezes, não tem nada a ver com as narrativas importantes trazidas nos desfiles: as disputas de poder, as tenebrosas transações, os títulos combinados, as relações perigosas com governantes, contraventores, traficantes, milicianos, etc. Tudo isso continua a existir. Carnaval tem que ser visto como política pública e a sociedade civil organizada pode e deve ter um papel mais ativo de presença, participação e controle social em torno do espetáculo carnavalesco. A esquerda, equivocadamente, tem desprezado por muitos anos o carnaval enquanto espaço de disputa de narrativa e de base social. Espero que o carnaval de 2018 faça rever essa postura e entender que é preciso disputar o carnaval por dentro, na sua estrutura, organização, forma e conteúdo. Se não o fizermos, em termos de cultura, vamos continuar matando amanhã o inimigo que morreu ontem.