29 de agosto de 1993, exatos 27 anos atrás, um grupo de mais de 30 pessoas, entre elas policiais civis e militares, entrava em Vigário Geral, zona Norte do Rio de Janeiro e matava quem aparecesse em sua frente. Naquele dia, 21 vidas inocentes foram ceifadas pelos agentes públicos do Estado. Naquele dia 21 famílias foram desmanteladas e despedaçadas pelos agentes públicos do Estado. Desde aquele dia, as 21 famílias esperam justiça e apoio vindo do Estado. Vigário Geral vive ainda hoje o descaso e a invisibilidade.
Para contar sobre a Chacina de Vigário Geral é necessário antes entender quem controlava o tráfico em 1993 na favela e quem queria extorquir os mandantes na época. A facção que comandava Vigário Geral em 1993 era o Comando Vermelho, que tinha como líder Flávio Negrão. Na época, o grupo chamado “Cavalos Corredores”, formado por policiais civis e militares (alguns envolvidos nas chacinas de Acari e Candelária) e também não policiais atuava extorquindo o tráfico de drogas, sequestrando traficantes e exigindo resgate, além de receber propina para não “entregar” o comércio de drogas local.
No dia 28 de agosto de 1993, alguns dos integrantes do “Cavalos Corredores” foram até a Praça do Catolé do Rocha, em Vigário Geral, para interceptar uma carga de 67kg de cocaína que chegaria na favela. Um pouco depois das 21h quatro dos integrantes do grupo que foram até a praça estavam mortos, entre eles o sargento Aílton, que era considerado o líder do Cavalos Corredores.
Domingo de sol, jogo do Brasil e vingança que atingiu inocentes
No dia 29 de agosto de 1993, a seleção de futebol jogaria contra a Bolívia por uma vaga na Copa do Mundo de 1994. No mesmo dia acontecia o enterro do sargento Aílton e em Vigário Geral o clima era de apreensão, mas ao mesmo tempo de empolgação com o jogo da seleção.”Era um dia lindo de sol escaldante, um domingo radiante e a noite ficou tudo nublado, tudo ruim, tudo difícil”. A fala é de Iracilda, viúva de Adalberto, um dos que foram assassinados na Chacina.
Adalberto Souza era ferroviário e no domingo foi ao Bar do Caroço, na Rua Antônio Mendes, ver o jogo da seleção, no bar também estavam Ubirajara Santos, José dos Santos, Guaracy Rodrigues, Luis Feliciano, Paulo Roberto, Jadir Inácio, Paulo César e o dono do bar Joacir Medeiros. Enquanto o jogo acontecia mais de 30 integrantes dos Cavalos Corredores se organizavam para dar início a vingança pela morte do seu líder. O jogo terminou com o Brasil vencendo de 6×0 e as comemorações pela vitória e também pela entrada do país na Copa do Mundo aconteciam Vigário Geral a dentro. Comemorações que foram interrompidas por tiros e bombas.
O massacre começou por volta das 23h quando cinco homens em um Santana verde metálico mataram Fábio Lau, 17 anos, que estava em uma moto na Praça Córsega. Antes de prosseguir com a matança os cinco dos mais de 30 agentes do grupo incendiaram a moto e se encontraram com os outros integrantes na Praça Catolé do Rocha, alí incendiaram cinco trailers. A partir daí o grupo foi dividido em três, um deles chegou no Bar do Caroço jogou uma bomba e atiraram em todos os que estavam ali. Apenas Jadir e Ubirajara sobreviveram, pois se fingiram de mortos.
Por volta da meia noite o grupo entrou em uma casa que viviam Gilberto sua esposa, Jane, a nora, Rúbia, os filhos Lúcia, Luciléia, Lucinete, Lucilene e Luciano. Todos os integrantes da família dormiam quando a casa foi invadida e todos foram mortos. A partir daí os grupos foram matando quem aparecesse na frente deles, pessoas que morreram sem nenhum tipo de envolvimento com o tráfico, todos trabalhadores, todos inocentes de qualquer coisa. Além dos aqui já citados, foram assassinados: Cléber Alves, Clodoaldo da Silva, Amarindo Baense, Hélio Santos e Edmilson Costa.
Os dias e anos seguintes
Para Iracilda esses 27 anos foram todos de muita luta, altos e baixos e também de vigilância. “Eu tive que sair de Vigário para prosseguir na luta por justiça e ao mesmo tempo preservar meus filhos, pois na época a gente recebia cartas que era direcionada a todos nós das famílias dos que foram assassinados. Eu estava na linha de frente pois meu marido era filho do presidente da associação de moradores na época, então ou eu preservava meus filhos e ia à luta ou eu ficava lá e corria muitos riscos”, disse Iracilda.
Ao todo foram 52 pessoas investigadas pelo massacre em Vigário Geral, destas 47 eram policiais militares, três eram policiais civis e dois eram informantes. Porém destes 52 investigados, 33 foram indiciados e apenas sete foram condenados, são eles:
- Arlindo Maginário Filho que foi condenado no primeiro júri a 441 anos e quatro meses de prisão, mas a pena foi reduzida para 58 anos. Ele foi absolvido no segundo júri, em 15 de novembro de 2003;
- Paulo Roberto Alvarenga foi condenado a 449 anos e oito meses de prisão. No segundo júri, a pena foi reduzida para 59 anos e seis meses. Em 2013, ele recebeu liberdade condicional;
- Alexandre Bicego Farinha foi condenado a 72 anos no primeiro júri e a 59 anos e seis meses no segundo júri, porém foi morto em 2007, quando aguardava em liberdade o julgamento de um recurso;
- José Fernandes Neto foi condenado a 45 anos de reclusão no primeiro júri, pena mantida no segundo julgamento. Ele recebeu o direito a liberdade condicional em 2006;
- Roberto César do Amaral foi condenado no primeiro júri a seis anos de reclusão e foi absolvido em segundo julgamento, em 2006;
- Adilson Saraiva da Hora foi condenado no primeiro júri a 72 anos e no segundo a 59 anos e seis meses. Em 2007, foi absolvido em um terceiro julgamento;
- Sirlei Alves Teixeira que foi condenado a 59 anos de prisão no primeiro júri e a pena foi mantida no segundo julgamento, realizado em 2003. Em dezembro de 2017, ele foi para o regime semi-aberto. Sirlei, diferente dos outros condenados está preso, mas por um roubo em uma agência bancária enquanto estava foragido.
Além deles, outros três réus iriam ser submetidos ao júri, porém morreram antes da submissão. Em 1994, Leandro Marques da Costa fugiu e não foi mais encontrado, com isso chegou a ser pronunciado à revelia, mas o caso não foi levado a júri porque, na época, a lei não permitia o julgamento sem a presença do réu.
Sem a prisão dos algozes de seu marido Iracilda fala que não consegue deixar de ficar preocupada, mesmo após 27 anos. “A gente carrega esse estigma, 27 anos depois a gente ainda tem que viver a sombra de uma preocupação. Todo mês quando vou em Vigário entregar as cestas básicas para as famílias eu não entro na favela. Eu falo com o Jadir que temos que estar vigilantes estando ausente e presente ao mesmo tempo, porque a pessoa que faz uma vez dificilmente não fará de novo. Não tiro foto com meus filhos, é uma situação que a gente não consegue ficar sossegado. Eu não dou endereço, não falo onde moro, aqui as pessoas não sabem quem eu sou. São 27 anos de vigilância. Eu falo com meus filhos: eu prefiro estar no banco de trás do que no da frente porque eu não quero nunca pagar com a vida de um filho ou neto, com algo que eu segui adiante”.
Segundo Iracilda a luta para que o Estado cumpra com seu dever para com as famílias atingidas na Chacina de Vigário Geral é constante e frequente até hoje. “A gente ficava 10 dias dentro do fórum, comendo dentro do banheiro pra garantir alguma coisa, porque se fosse pelo Estado eles seriam taxados de bandidos”, contou. Iracilda fala ainda que durante esse tempo escutou muita coisa e teve que ficar calada, frases que vinham, inclusive, de deputados. “Eu ouvi muito em porta de banco coisas como: ‘Deus me livre Vigário Geral só tem bandido’. E as vezes senhoras falando: ‘Tinha que ter matado mesmo’. Políticos falavam na minha frente: Vigário Geral foram 21 tinha que ter sido 42, seu marido levou três tiros deveria ter levado 10”.
Com as constantes notícias de violência policial e mortes de pessoas nas favelas, Iracilda diz que muitas vezes pensa que se a justiça fosse feita, se os algozes tivessem sido presos talvez servisse de exemplo e fala que a única diferença de 2020 para 1993 é que: “Antigamente matavam no atacado hoje é no varejo”. E fala ainda que a luta continua para que as pensões que são direitos das famílias voltem a ser pagas. “Em 2000 a Lei foi assinada como pensão vitalícia pelo então governador da época Anthony Garotinho, mas quando foi para a procuradoria geral, o procurador da época colocou algo que fez com que a lei passasse a ser por tempo de vida até 65 anos”, contou.
A lei não pagaria o retroativo, passaria a contar de 2000 em diante, o que fez com que alguns familiares nem chegassem a receber a pensão. “A Iracema perdeu o marido Joacir que já tinha 60 anos em 1993, ou seja, quando a lei foi assinada em 2000, ela não teve mais direito a pensão. Ela deve estar com seus 80/81 anos, até ano passado ela tinha dois filhos que a ajudavam financeiramente, porém os dois morreram. Hoje ela vende sacolé pra sobreviver e a filha também ajuda como pode”, contou Iracilda. Ela fala ainda que só ficou sabendo da situação de Iracema em 2018, quando perdeu a própria pensão e outros familiares a contaram que também já tinham perdido. “Então fui atrás pra mudar a lei e torná-la vitalícia como originalmente, fui na Alerj conversei com Marcelo Freixo, falei com o desembargador José Muiños Piñeiro. A Lei foi levada a plenário e aceita por unanimidade, mas quando foi pra ser sancionada o Pezão, governador na época, estava sendo preso, mas o Dorneles sancionou, isso em 2018. Mas até hoje, estamos sem receber a pensão”, disse Iracilda.
Mesmo com toda a dor e luta, Iracilda fala que hoje entende os caminhos e as peças que a vida pregou. “Hoje eu entendo o motivo de eu ter perdido meu marido, de lá pra cá nossa vida tem altos e baixos, quando chegava agosto eu chorava, as entrevistas me matavam, mas hoje eu vejo como uma forma de falar sobre o marido incrível que eu tinha. A gente não pode deixar parar e temos que lutar pelas pensões pois, ninguém pediu para entrarem na favela e matarem 21 trabalhadores, então o Estado tem que arcar com nosso direito pela pensão”, completou Iracilda.