Carta aberta à Michelle Obama

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Querida Michelle LaVaughn Robinson Obama, tudo bem?
Espero que sim! Ou deveria apenas lhe chamar de Miche? Me sinto sabendo tanto da sua vida que já me vejo íntima.

Acabei de ler seu livro e preciso lhe dizer que “Minha História” (#IamBecoming)  chegou a mim como um emaranhado de diário pessoal-político-histórico que fez minha cabeça, sentimentos, ideias e tudo mais irem da desesperança à renovação da esperança, do medo à coragem, do desânimo até as inúmeras anotações do que eu poderia re-alinhar no meu mapa mental e em minha ações para transformar em energia e seguir à diante.

Cada linha, anotação, canetinha colorida sublinhando uma frase ou até a página inteira, parecia me levar para além de um portal realista de possibilidades e lembranças. Infelizmente a cada morte de adolescentes relatada em seu livro, me fez lembrar a morte dos tantos estudantes das escolas por aqui, que estão na linha de confrontos, estudantes que perdemos nas intervenções militares ou para o tráfico instalado nas favelas, ou como aconteceu durante as greves escolares dos últimos 4 anos. Tempo em que comecei a palestrar nas escolas públicas do Rio de Janeiro.

O ataque à escola fundamental Sandy Hook em Newtown, Connectucut, me fez lembrar o massacre da escola Escola Municipal Tasso da Silveira em Realengo, aqui no Rio de Janeiro em 2011. A morte de Hadiya Pendleton (uma jovem de 15 anos, da escola Martin Luther King Jr. que fazia parte da banda da escola e morreu baleada) me lembrou Maria Eduarda de 13 anos, que em 2017 morreu também baleada em uma escola na Fazenda Botafogo.
É triste saber que até mesmo no seu livro, de mais de 400 grossas páginas, me lembrou o quanto estamos vulneráveis por todo o tempo, me lembrou de todas as noites que não durmo enquanto minha irmã não chega em casa e de como estamos em constantes guerras, embora aqui no nosso país elas aconteçam, mas não são declaradas.

Guerras não-oficializadas.

Os ataques policiais descontrolados, as guerras de gangues/facções. É como ler a nossa vivência aqui através de uma ótica americana, pois as realidades se repetem e se diferem em poucos pontos, como a oportunidade de uma educação que é um dos pouquíssimos instrumentos de mudança de vida, que nos faça subir positivamente na sociedade.

É claro que a gente se questiona se todas as coisas em seu livro são reais ou meramente uma estratégia política (o que eu não acredito ser), mas isso pouco importa diante do conteúdo e da história de uma mulher negra que mais uma vez me apresentou a política para além da partidária. Acima de tudo me reforça como é possível continuar e ir além da linha do cansaço. Assim como a Marielle Franco me apresentou enquanto esperávamos um uber e conversávamos na porta do evento no qual fui convidada certa vez, onde logo após ela me abraçou, se despediu e me deixou com a faísca de transformação política acesa dentro de mim.

Miche, seu livro é um convite não só à história da 1ª primeira-dama afro-americana, mas um convite para dialogar sobre a escravidão e seus reflexos no mundo inteiro. Seus relatos falam sobre o autocuidado para sobreviver caminhos inevitavelmente solitários, no que tange a vida de negros com maior ou menor visibilidade. E até mesmo nos dá um refresco na questão da solidão dessa mesma mulher negra que você e eu somos, em relação à construção da família, do amor, do afeto.

Reforço aqui sobre nossa solidão pois é um ponto crucial, onde percebo que ao longo do caminho, os diálogos entre mulheres negras (ao menos nos que venho acompanhando) é de extrema desistência dessa construção por cansaço emocional mesmo, da existência dessa possibilidade de receber amor saudável. É claro que você não é a única a nos evidenciar de que é possível existir amor para nós, mas ter tudo isso reunido em uma só história, sobre tantos assuntos foi alucinante (acho que é a melhor palavra pra definir).

No fim das contas, ‘Miche’, você foi apenas uma menina negra que escapou de um mundo feito totalmente contra sua existência e ao chegar no lugar mais alto do seu país, como mulher negra, precisou fazer concessões, pois entendia que agora a responsabilidade era sobre toda uma nação e não exclusivamente pessoal.
Você poderia ser qualquer outra menina negra afro- americana ou brasileira, aqui de Duque de Caxias (minha cidade) ou de qualquer parte do mundo, como a própria Malala. Afinal, quantas garotas com o mesmo potencial ou maior que você existem por ai? E nem estou falando de seu lugar como a primeira-dama, mas de fazer tantas transformações como as que fez ao longo de sua vida (inclusive essas transformações foram as que mais me encheram de fôlego), pois foram essas tantas corridas ao longo da vida, seja como advogada ou participante de ONG’s que construíram a mulher que você se apresentou na Casa Branca.

Foi sua construção de vida que te fez entender sua posição no mundo.

“Quem éramos? O que nos importava? O que podíamos fazer?” Paǵ 244

Esforço, foco, dedicação, autocuidado, a solidão da mulher negra em várias perspectivas, nosso lugar e peso de fala, cobranças, reflexos do racismo em gerações à perder de vista, efeitos colaterais da segregação racial e misoginia mais amplamente dentro do recorte racial, são tantos aspectos. Quem somos? O que nos importa? O que podemos fazer?

A responsabilidade da autoestima e esperança sobre si, sobre sua família e sobre todo um país.

Fiquei quase sem ar todas as vezes que você relata o caminho de Barack até à presidência e um dos trechos que mais me chamou atenção, embora não seja nada novo foi:

 ” Barack é, em parte, visto como um negro de alma branca na nossa comunidade”, disse Donne Trotter ao Chicago Reader. Falando à mesma publicação, Boddy Rush afirmou: “Ele frequentou Havard e se tornou um tolo instruído. Não nos impressionamos com esses caras com diplomas de elite da Costa Leste”. Em outras palavras, ele não é um dos nossos. Barack não era um negro de verdade, como eles – alguém que falava daquela maneira, que tinha aquela aparência, que lia todos aqueles livros jamais poderia ser negro de verdade.

O que mais me incomodava era que Barack encarnava tudo o que os pais do South Side diziam querer para os próprios filhos. Ele era tudo o que, durante anos, tinha sido tema dos discursos de Bobby Rush, Jesse Jackson e muitos líderes negros: estudara e, em vez de abandonar a comunidade afro americana, agora procurava servir a ela. Pág. 216

Confesso que parei nesse trecho até voltar à leitura, pois a questão do desconforto de negros chegarem ao topo e terem acessos (não privilégios) acontece de forma bilateral (em meio à negros e brancos) logo, essa corrida, pelo menos ainda na minha geração, é incansável e de fato ainda parece assustadora. Saber que muitas vezes não vamos ter apoio de nenhum dos lados. Então é preciso apenas seguir convictos do propósito.

Terminar seu livro, foi dizer pra mim mesma: Sem olhar para os lados, siga! Siga no que você acredita, se atente ao que importa e não desvie o olhar para as adversidades pois elas sempre serão minúsculas perto do que estará sempre por vir.

 “A cor da nossa pele nos tornava vulneráveis. Era algo com que sempre precisaríamos lidar” – Pág 43

Entre o tanto que esse livro me alcançou, me afirmou também um olhar mais impetuoso sobre a educação e me impulsionou a focar e traçar estratégias entre a educação e os efeitos colaterais do racismo e desigualdade social/ de renda e os tantos demais pesos e vulnerabilidades que temos ao longo do processo.

Inclusive preciso lhe contar que, após ter largado à universidade há 10 anos, finalmente venci minhas crenças limitantes e prestei o vestibular. Passei para a turma de pedagogia de uma universidade pública à distância. Esse foi um dos maiores desafios ao qual me joguei este ano de 2019.

Em todos os seus relatos, sem sombras de dúvida, fica nítido que foi o afeto familiar quem fez tanto os seus caminhos, quanto os de Barack, os fortalecendo para que chegassem onde chegaram. Mesmo que a construção de suas famílias, tenha sido tão diferente.

É importantíssimo entender qual o meu lugar quanto líder comunitária no mundo, mas essa é uma consequência de quem eu sou, de quem vou me tornando e de como vou me encontrando e de como me alimento a fim de estar preparada (ao máximo que puder) quando as oportunidades chegarem, independente de quais oportunidades sejam. É preciso preparo incansável.

“I Am Becoming” reforçou em mim a importância dos meus núcleos de afeto, das minhas redes de segurança, de saber que não estou sozinha, mas quando estiver (pois esse dia sempre chega de uma forma ou outra, pontualmente ou não) será preciso continuar.

Sabe Michelle, eu tenho uma grande sorte de ter muitas pessoas queridas em minha caminhada, da mesma forma que você.

Uma das páginas de seu livro, me fez lembrar minha relação com essas pessoas, e foi sobre o discurso de posse de Obama, no qual ele diz:

” Neste dia, nos reunimos aqui porque escolhemos a esperança em vez do medo, a unidade de propósito em vez do conflito e da discórdia.”

Assim como você, eu não estava acostumada a cometer erros. Na verdade eu sempre exagero as coisas na maioria das vezes. Eu não estou acostumada a fracassar, mas nos últimos anos a sensação de fracasso estava dominando a minha mente e ter pessoas que estejam lá e nos digam a verdade é fundamental para se reconectar com a nossa verdade.

Eu sou realmente boa?
Me faço essa pergunta todos os dias. Boa pra continuar, pra conseguir absorver tal coisa, para debater tal assunto?

– Sim. Eu sou!

Espero que possamos nos falar em breve e falarmos sobre os nossos avanços por aqui. Sim pois mesmo diante do caos eu não me permito desistir e me preparo para estar mais forte e quando o dia chegar poderemos lutar mais uma vez por tudo que acreditamos.

Beijos
Priscila Barbosa
Duque de Caxias, RJ . BR