A palavra de ordem da sessão legislativa que começa no mês que vem em Brasília é a eleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Não é pandemia nem vacina nem contágio, internação e morte dos eleitores. Até lá confia-se que a imunização seja uma realidade, com vacinas e insumos essenciais à sua fabricação disponíveis no país. O enfrentamento ao coronavírus tem sido especialmente duro para o Brasil de Bolsonaro e Pazuelo, os dois responsáveis principais pelos descaminhos da política sanitária que nos conduziu ao lamentável estado em que nos encontramos, no qual ciência e política se desconhecem.
Ao falar dos responsáveis por esse estado de coisas não se pode esquecer do chanceler Ernesto Araújo e sua pregação contra o globalismo, em defesa da soberania que nos trouxe à condição de pária autoproclamado e orgulhoso, conforme suas palavras na formatura da turma do Instituto Rio Branco em novembro de 2020. O começo de tudo foi a recusa do presidente em apoiar a quarentena no início do ano, continuou com as sucessivas trocas na Saúde até descer ao nível do general Eduardo Pazuelo. Então Bolsonaro impôs a cloroquina e a hidroxicloroquina no combate à pandemia, levando-nos ao descrédito no meio científico mundial.
Foi naquele tempo também que Bolsonaro, seu filho Eduardo, Abraham Weintraub e outros começaram a hostilizar a China nas redes sociais, atribuindo-lhe a criação e disseminação do vírus no mundo para enfraquecer as nações ocidentais e recuperar sua economia. Expressões como “vírus chinês” e “vírus comunista” envenenaram o ambiente, e Eduardo atacou frontalmente os chineses a propósito tecnologia de redes de quinta geração, o 5G, tuitando na última semana de novembro que “o governo Jair Bolsonaro declarou apoio à aliança Clean Network, lançada pelo governo Trump, criando uma aliança global para um 5G seguro, sem espionagem da China”. Esta nova tecnologia na qual a China está à frente do resto do mundo poderá gerar uma produção econômica de um trilhão de dólares até 2030 e criar três milhões de postos de trabalho. O 5G é, de fato, o pivô da guerra comercial Estados Unidos x China, onde Washington vai ficando para trás num campo em que tinha hegemonia nas últimas décadas, junto com seus aliados tradicionais.
Mais recentemente, já com as vacinas em teste no mundo, o próprio Bolsonaro fez questão de criar mais uma aresta: “Da China nós não compraremos. É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população pela sua origem. Esse é o pensamento nosso”. De certa forma foi como confirmar um tuíte do filho postado pouco antes, classificando o Partido Comunista Chinês como “entidade agressiva e inimiga da liberdade”. Trump e os Bolsonaro temem que o 5G da empresa Huawey chinesa colete e armazene dados em escala mundial através das redes de comunicações graças à sua espantosa velocidade. Os chineses negam e insinuam sutilmente que espionagem é expertise americana desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial, que terminou em 1945.
Em outra frente de combate, também em novembro, o Brasil sustentou forte oposição à proposta da Índia de quebrar patentes farmacêuticas de tudo relacionado a Covid-19, apresentada na Organização Mundial do Comércio com apoio de 99 nações. Nossa delegação ainda usou todas as oportunidades para dificultar a proposta indiana, obedecendo aos Estados Unidos, a maior potência no setor, e indo contra o próprio interesse da população brasileira, que continuará nas mãos da indústria de remédios e vacinas dos países desenvolvidos. No 5G e nas patentes farmacêuticas o Brasil mostrou submissão total a Donald Trump, envergonhando a si mesmo e aos países do Brics, que obviamente endossam a proposta indiana. Como sempre, confiamos na reeleição do presidente americano, que deveria acontecer naquele mesmo novembro fatídico.
Trump perdeu, Bolsonaro embarcou na conversa de fraude eleitoral, deixou de parabenizar Joe Biden na primeira hora e tudo o que acontece hoje é consequência desse somatório de erros diplomáticos adolescentes. Como a vida é feita de escolhas, inclusive entre nações, Índia e China cobram as dívidas políticas nas vacinas e insumos sem os quais estaríamos perdidos antes que acabe o ano. Bolsonaro odeia e sofre, mas curva-se a Ji Xiping, presidente chinês, e ao primeiro ministro indiano Narenda Modi, os donos dos insumos das vacinas, e que os distribuem pelo mundo como bem entendem. A vergonha do presidente brasileiro diante do mundo, hoje, é enciclopédica. Não é chamado, ouvido ou cheirado sobre o que quer que seja; a imagem que lhe cabe é a do cachorro que caiu do caminhão de mudança de Trump entre a Casa Branca e a Flórida.
Aqui na América Latina, depois de gastar dois anos no poder em ameaças e impropérios a Nicolás Maduro, Bolsonaro teve de receber doações de oxigênio para as vítimas de Manaus em caminhões da República Bolivariana da Venezuela através da mesma fronteira que chegou a fechar, em 2019, numa atitude hostil desnecessária. Este conjunto de eventos que ainda repercutem no plano internacional feriram de morte a imagem internacional de Bolsonaro e do país. Hoje, nem os governos europeus indignados com a situação amazônica batem em Bolsonaro; não para poupá-lo, mas sim porque lá também não se chuta cachorro morto. Aguardam sugestões para a região, que não tardarão a surgir do governo Biden.
Pra coroar o processo destrutivo do Brasil, juntamente à alienação do nosso patrimônio, ao abastardamento do nosso povo, ao aniquilamento da moral nacional, aí está, exposta ao mundo civilizado, a condução assassina do controle da pandemia que matou 220 mil brasileiros até quinta-feira, 21 de janeiro, como todos viram e ouviram em declarações como “Não sou coveiro”, “Tudo agora é pandemia, tem que acabar esse negócio, pô!”, “Não precisa entrar em pânico, a vida continua”, “Vacina obrigatória aqui só no Faísca (o cão da família)”, “Tem que deixar de ser um país de maricas!” e outras ditas diante de familiares e amigos de vítimas fatais do coronavírus e dos “urubus” da imprensa.
Agora, sem seu protetor gringo, sem projeto administrativo e com apoio político cada dia mais dispendioso, Bolsonaro se atira desesperado a fazer os presidentes da Câmara e do Senado. O custo da empreitada é proporcional ao desprestígio interno e à irrelevância no cenário mundial, e todos nós pagaremos essa conta. Até as vésperas do último Natal, Bolsonaro tinha liberado R$ 20,6 bi para bancar despesas indicadas por deputados em emendas ao orçamento. No ano passado, foram R$ 10 bi, a metade. Graças ao dinheiro fácil, são esperadas traições em cascata a seu favor na votação dos deputados, que é secreta.
Tanto quanto o candidato de oposição a Bolsonaro, os deputados trairão também seus eleitores, mantidos na mais completa ignorância sobre o que Bolsonaro pretende aprovar na forma de PECs, que ampliam seus poderes presidenciais e tiram a segurança pública da esfera dos estados, criando a patente de general da PM e integrando as polícias às forças armadas. A partir deste possível cenário, Bolsonaro agirá como líder da nova ditadura, nascida do voto livre do gado embasbacado e feliz com as migalhas de roubos, armas, munições, extorsões, execuções e todo o arcabouço de misérias que nos infelicitam. Aprimorando 2018, as eleições do ano que vem serão facilmente fraudadas com a volta da cédula eleitoral de papel, a ser aprovada pelo novo Congresso bolsonarista.
Tudo isso com aval dos militares golpistas e omissos, o auxílio do Legislativo e o oportunismo do Judiciário, que terá de abraçar o sucessor de Marco Aurélio Melo, que se aposenta no meio do ano no Supremo, e aqui entra na história: o Procurador Geral da República Augusto Aras, destacado no título. Ele nunca escondeu que Bolsonaro é o chefe, e já se adiantou ao declarar, sem ninguém perguntar, registre-se, que um possível estado de calamidade pública causado pelo descontrole da pandemia “é a antessala do estado de defesa”, provocado pela perturbação extra que causaria o processo de impeachment do presidente. A mídia noticiou que Pazuelo já está conversando com Aras – e não é sobre vacina.
Se tudo der certo pra essa gente, adeus projeto democrático brasileiro.