Já que estamos neste 2022 especialmente conturbado pela polarização política e por um clima de pré-guerra entre fações governistas e oposicionistas em torno do cargo de presidente da república, talvez seja de bom proveito lembrarmos um pouco de outra transição histórica, também traumática e dramática, a que aconteceu do império para a república, em 15 de novembro de 1889. No final das contas, veremos que forças políticas muito parecidas com as atuais estavam em cena disputando o poder, os monarquistas de um lado e os republicanos de outro.
Em 1889 o país estava dividido pelo fim formal de escravidão, determinado pela Lei Áurea da princesa Isabel, a filha do imperador que então viajava pela Europa, como era do seu gosto pessoal. O marido da princesa era o Conde D’Eu, que havia participado da Guerra do Paraguai, movida entre 1864 e 1870 pelo general Solano López contra Brasil, Argentina e Uruguai. Este detalhe pessoal do marido de Isabel terá toda a importância, já veremos.
D. Pedro II, o imperador, homem de letras, pensador e humanista, nunca simpatizou com a força militar, suas pompas e suas circunstâncias, mas mantinha o protocolo, tanto que até o genro era militar de carreira. Na Guerra do Paraguai o império ia mal das pernas, até que D. Pedro praticamente teve de aceitar o general Luís Alves de Lima e Silva, expoente das nossas forças, para comandar o Brasil no conflito.
A esta altura o país enfrentava pressões inglesas fortíssimas para acabar com o tráfico negreiro e a escravidão que sustentava a economia, as elites e o império. Várias leis pontuais se seguram, liberando sexagenários negros, os nascidos a partir de 1871 e outras providências que atendiam as reivindicações abolicionistas, mas não extinguiam a escravidão. O general Lima e Silva forjou um mecanismo concedendo a liberdade, assistência e terra aos escravos que se alistassem para lutar na guerra.
De um lado, a providência atendia os abolicionistas, mas de outro formou o contingente negro empregado como bucha de canhão pelo exército imperial contra os paraguaios. Foram dizimados muitos milhares de soldados brasileiros negros, que enfrentaram bravamente as tropas inimigas mais treinadas e equipadas. Luís Alves de Lima e Silva venceu, foi feito Duque de Caxias e patrono do exército. Mas não é isso o que se ensina nas escolas.
No período de apenas dez anos a partir do final da Guerra do Paraguai as forças emergentes contraditórias na sociedade travaram a luta surda e ferrenha patrocinada pelas elites econômicas e sociais que incluíam os donos da terra e do lucro e do outro lado intelectuais da causa negra, influentes na família imperial que sempre reconheceu a impossibilidade de resistir às pressões econômicas inglesas. Afinal, a Inglaterra já patrulhava o Atlântico de alto a baixo perseguindo navios negreiros, em nome da manufatura europeia que exigia relações de trabalho não escravagistas.
Quando a princesa assinou a Lei Áurea, as elites econômicas romperam de vez qualquer conversa e engrossaram o caldo republicanos que os militares mantinham no fogo há muito tempo. Daí a coincidência da sucessão histórica dos fatos, e daí também a origem fardada da república, proclamada pelo marechal Deodoro da Fonseca e tocada adiante por Floriano Peixoto o “marechal de ferro”. Desde então os milicos tomaram gosto pela direção do país, mas isso é assunto para outro dia.