Um dia para famílias negras, de Davi Nunes

O livro traz um narrador onisciente, que relata um lapso de tempo de duas famílias de alta classe social, em histórias que se entrecruzam.

A primeira, bem estruturada afetivamente, formada por Manu, artista plástico, o Basquiat brasileiro, casado com Mariá, uma professora universitária, irmã de Mara, também da área da pesquisa e ensino. O casal dirige, cada um a seu turno, seu próprio veículo e sua própria vida. Manu é assessorado por um homem gay branco, cujo foco é colocar em evidência a arte de Manu, expor em grandes galerias e ganhar dinheiro, em detrimento da luta antirracista.

Rodrigo Madrugada é um poeta refinado, com grande capacidade criativa, amigo da família, que, indiretamente, participa da formação intelectual da família, pela convivência, interações, pelas conversas entre ele e os protagonistas e, inclusive, por sua arte.

A segunda família, formada por Fernanda, mãe de Andreia, com pai belga, muito pouco presente na criação, educação e afetividade. Fernanda vive tentando ‘embranquecer’ a filha, fugir de suas raízes e da herança religiosa, para tentar protegê-la das agruras do racismo e para inseri-la no mundo da branquitude. A vivência desta família se contrapõe à primeira, apesar do mesmo acesso a dinheiro e aos bens que ele proporciona. Há uma perda em relação à afetividade, devido à ausência do pai, bem como a uma estrutura afro centrada. Fernanda não dirige, ela tem motorista particular.

A despeito de as famílias viverem em uma cidade notoriamente negra, e terem uma ascensão social e cultural, viverem na parte chamada ‘nobre’ da cidade, não estão imunes ao crime de racismo estrutural, que se manifesta tanto de forma física como psicológica; chega perto da família de Manu e Mariá, mas atinge com violência a família de Fernanda e Andreia.

As narrativas se entrecruzam, trazem outros personagens secundários, mas não menos importantes no enredo, e tecem uma teia indissociável, em que o racismo se infiltra e age cruelmente. As filhas de ambas as famílias estudam em uma escola de brancos para brancos. Ali, principalmente, se passa o ápice do romance, onde o racismo reina. A história abre uma tela de debates, muito bem escrita e estruturada, que cativa olhos, ouvidos e o nosso intelecto, pela beleza plástica, respeito ao afeto e humanidade, lutas objetivas e subjetivas pela existência humana, respeito à humanidade das pessoas negras. Convida a quem lê a mergulhar nas entrelinhas do romance, no não dito, na tela e nas paisagens da cidade do Salvador e, principalmente, em sua paisagem humana.

Davi nos brinda com uma pérola artística, traz à tona um texto entrelaçado por afetividade, debates importantíssimos, escrito com uma técnica cinematográfica e de beleza ímpar, numa cidade que é encantadora e ao mesmo tempo palco de desrespeito à sua população majoritariamente negra; o livro traz, também, a possibilidade de existência digna, do enriquecimento espiritual e da vitória possível, se soubermos valorizar nossas raízes, nossa ancestralidade e, principalmente, do resgate de nossa humanidade.

Davi Nunes é doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na (PUC-Rio), publicou os livros Zanga (2018), Bucala 2019, Banzo 2020 e Um dia para famílias negras (2021).

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Valdeck Almeida de Jesus
Valdeck Almeida de Jesus é jornalista definido após várias tentativas em outros cursos, atua como free lancer, reconhecendo-se como tal há bastante tempo. Natural de Jequié-BA (1966), e escreve poesia desde os 12, sendo este o encontro com o mundo sem regras. Sua escrita tem como temática principal a denúncia: política, de gênero, de raça, de condição social, de preconceitos diversos: machismo, homofobia, racismo, misoginia. Coordena o movimento “Galinha pulando”, o qual pode ser visto no blog, no site e nas publicações impressas. Este movimento promove anualmente um concurso literário, aberto a escritores(as) do Brasil e do exterior. A poesia lhe trouxe o encantamento, mundos paralelos, as trocas, a autocrítica, a projeção de si e de outro(s), maior consciência de classe e de coletivo. Espera que as sementes plantadas se tornem árvores, florescendo e frutificando em solos assaz diversos. Possui 23 livros autorais e participa de 152 antologias. Tem textos publicados em espanhol, italiano, inglês, alemão, holandês e francês. Participa de vários coletivos da periferia de várias cidades, bem como de algumas academias culturais e literárias.