Artistas de rap reclamam da falta de apoio governamental nas periferias de Salvador

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2023 a depressão afeta 4,4% da população mundial e 5,8% dos brasileiros. O Brasil é o país com maior prevalência de ansiedade no mundo, com 9,3%. Essas enfermidades afetam todas as camadas da população, independente de gênero ou condição econômica, e, inevitavelmente, atinge músicos de rap.

“Hoje em dia, tudo que tenho para manter minha autoestima é um sonho, ter pelo que lutar e o bem que esse sonho pode trazer para minha vida”, diz Kalisy, de 22 anos, artista do trap, rap e o afrobeat, morador de Sussuarana, em Salvador.

Atualmente, diversos músicos vêm se reinventando no rap. Como sempre, muitos jovens buscam sua carreira de forma independente, mas, por falta de verba, acessibilidade e apoio, estão sendo invisibilizados. Gênero musical mundialmente conhecido, o rap traz consigo o significado social da poesia, mas é preciso pensar no aspecto psicológico da vida dos artistas.

Um dos motivos para sentimentos negativos, podendo chegar à depressão, é que músicos periféricos de rap não têm espaços nas programações culturais da cidade de Salvador.

Muitos tem bagagem musical na composição de letras, produção de beats, mixagem, mas o preconceito e o racismo de mãos dadas impedem muitos de continuarem um sonho que vai se configurando como uma realidade distante.

Rapper Marroquino. Crédito: Arquivo pessoal @alexandremarroquino

Na música “Desacelerar”, o rapper falar sobre diminuir o ritmo e pensar mais em si, na sua saúde, força e vitalidade, acima da obrigação do que é tido como sucesso, principalmente quando ele custa sua vida. Confira o clipe da música Desacelerar

Rap como aprendizado contínuo

O rapper Marroquino, de 28 anos, morador do bairro Federação, em Salvador, falou um pouco sobre sua trajetória e de como tenta intercalar as memórias de quando morou em Alagoinhas e Nova Soure, interior da Bahia.

“Comecei no rap profissionalmente em 2018, quando transformei a minha vida para tornar ele minha fonte de renda. Desde então, tenho tentado somar minha vivência interiorana com relatos que vi, li ou ouvi na capital em forma de rima”.

O rap faz parte da cultura nacional e ainda é marginalizado por muitos que não fazem ideia de como diversas pessoas buscam no gênero uma possibilidade de evoluir e modificar esse significado totalmente errôneo.

É como Marroquino pauta a sua percepção sobre o assunto: “Enxergo a cultura hip-hop como um viés de aprendizado eterno, já que ela reflete a sociedade e a sociedade é eternamente mutável”, afirma.

Uma das causas para essa problemática continuar se enraizando, é o fato de não ter apoio governamental, com programas culturais que abram a possibilidade de incluir a população periférica. Por meio desses programas, jovens independentes poderiam aparecer, crescer e se destacar.

O descaso do poder público com o rap

Sem programas culturais para incluir a população periférica com atuantes verdadeiramente envolvidos no rap, jovens independentes ficam sem acesso.

Salvador é uma cidade rica culturalmente, e em cada canto existe um tipo de arte sendo feita, mas, pelo fato de não haver políticas de ação cultural para o rap, onde a maioria dos artistas independentes estão, o apagamento dessas pessoas continua.

Daí a alegação de diversos músicos de que existe um “cansaço psicológico“, segundo as palavras de Marroquino. O artista expressa a incansável luta no caminho profissional de um artista sem apoio.

“Ser um artista independente é estar sempre em busca do equilíbrio, manter a nossa parte profissional que deveria ser a nossa fonte de renda, mas é um investimento, porque muitas vezes a gente não recebe quase nada, só paga, acaba sendo uma luta cansativa para alcançar a visibilidade”.

Só valorizam artistas de rap de fora

Tas Mc, de 20 anos, é morador de Brotas (Engenho Velho de Brotas) em Salvador, e tem uma carreira independente movimentada. Ele começou ouvindo rap gospel, bandas como Apocalipse 16, Ao Cubo e Pregador Luo.

Em 2017, deu um passo na carreira, quando começou a escrever suas músicas e, então, no ano seguinte, decidiu lançar algumas, cravando o profissionalismo no rap.

MC Tas. Crédito: Arquivo pessoal @tas071

“Culpa parte 2 é a continuação de um projeto que tem por objetivo ser mais íntimo, trazer ao público questões bem sinceras e pessoais, então a música retrata muito dores, insegurança, auto estima, conflitos internos, até por isso no fim do clipe tem uma mensagem de ajuda psicológica e tudo mais, então eu acredito que por ser algo tão verdadeiro que as pessoas se identificam e eu consegui retratar esse sentimento”.

“Desde então já lancei meu primeiro álbum, que foi premiado como sétimo melhor disco baiano de 2020, lancei alguns clipes, fiz alguns shows e fui notícia na Globo”, conta.

Tas afirma que essas conquistas, mesmo que poucas, engrandecem o seu trabalho. Ele acredita que faria muita diferença ter ajuda do governo estadual baiano.

“É essencial o investimento público, mesmo. A presença do estado deve existir, porque se você tem um projeto de esporte, de cultura, de música, você tá dando àquele jovem uma perspectiva e, através disso, vai diminuir a criminalidade e vários outros problemas”, afirma.

O MC ainda destacou que a melhor opção seria os artistas se juntarem para não terem que “esperar contratante”, pois “só valorizam artistas de fora“, o que acaba inibindo os conterrâneos do estado.

Falta de inclusão e adoecimento

Pelo fato da população periférica ter menos acesso aos espaços culturais de Salvador, isso acaba criando uma rede midiática e social precária de cultura e visibilidade. Falta também cuidado com as vidas de cada artistas, especialmente no aspecto psicológico.

Com a desvalorização, vem o cansaço psicológico, que faz com que o artista sinta repulsa da sua própria forma de trabalho. Isso se dá a partir do momento que é implantado em sua mente que ele não irá alcançar o sucesso que almeja.

Também surgem barreiras para modificar positivamente sua forma de viver, com a alienação de outros artistas dispersos da realidade. Acabam sendo inibida qualquer hipótese de elevar a carreira.

Foi o que já aconteceu com Kalisy. Ele tem dois anos de profissionalismo no mundo da música e se intitula um multiartista pela mistura musical. Homem preto e periférico, Kalisy leva na bagagem vivências negativas de preconceito e racismo, além de problemas que vieram por conta da desvalorização dos seus projetos musicais, como transtorno de ansiedade.

Kalisy. Crédito: Arquivo pessoal @kalisy.wav

“Narciso é um projeto muito pessoal, ela retrata a linha tênue entre o amor e o ego. O nome do single se dá pelo herói Narciso, que morreu após ficar obcecado pela sua própria imagem, e no momento em que a escrevi, eu estava passando por uma descoberta de amor próprio que confundia com o ego”.

Falta de conhecimento é desoladora

O artista ainda expressou ser “desolador” o fato de que, muitas vezes, quem está de fora não imagina o esforço feito para entregar um trabalho de qualidade e não ser reconhecido.

“O fã vê tudo lindo e maravilhoso, mas a realidade é que por trás das câmeras estamos dando suor e sangue triplicado para ter o mínimo, seja na área da música ou não”, disse.

Assim como todo artista independente da periferia que anseia por apoio artístico governamental, Kalisy afirma que “Salvador precisa desse investimento na arte e nem todo mundo sabe disso. É preciso investir na cultura, oportunidades para artistas que muitas vezes tem que se desdobrar em contextos desconfortáveis para ter o mínimo”.

O profissional de saúde Denilson Ramos, 24 anos, do bairro Periperi em Salvador, é psicólogo e acredita que “o adoecimento psíquico está cada vez mais visível sim na população periférica, e um dos fatores mais agravantes é a falta de assistência do poder público”.

Crédito: Denilson Ramos- Psicólogo. Crédito: Arquivo pessoal @@mansha071

Saúde mental precisa ser valorizada no rap

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil tem um índice de suicídio crescente entre jovens negros, de 4,5% maior em relação aos brancos.

Uma ponte entre o apoio cultural estatal e o acompanhamento psicológico gratuito seria a contrapartida para que essa população se sentisse segura sobre os sonhos que pretendem alcançar.

Isso modificaria seu modo de viver, demonstrando cuidado com aqueles que mantém a cultura da cidade viva.

Raissa Ramos

@yes_atena_

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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