A subnotificação de denúncias de assédio sexual contra mulheres no trabalho é um dos obstáculos para enfrentar esse problema. Entre 2021 e 2022, foram recebidas apenas 24 denúncias, um dado subnotificado que não demonstra a realidade no Amazonas, segundo o Ministério Público do Trabalho do Amazonas e Roraima (MPT-AM/RR).
Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgada na última quinta-feira (2) com dados inéditos mostra que, em 2022, 30 milhões de mulheres sofreram algum tipo de assédio: de comentários constrangedores na rua a encoxadas no ônibus. É o equivalente a uma mulher assediada a cada um segundo.
A Procuradora do Trabalho do MPT-AM/RR, Fabiola Bessa Salmito, explica que o motivo da subnotificação é a dificuldade para provar o assédio e o constrangimento.
“As denúncias de assédio que chegam estão relacionadas ao viés discriminatório a determinados grupos, denominados de grupos vulneráveis – lgbts, negros, mulheres. E não se observa um setor específico. Já atuamos em áreas específicas, como o setor de telemarketing e bancário, e verificamos que tinha uma constante de casos de assédio”, afirma.
Trabalhando pela primeira vez com carteira assinada como recreadora, a manauara Karine (nome fictício para preservar a fonte), de 24 anos, percebeu que cortar assunto e ser ríspida num ambiente predominantemente masculino não a livrou de sofrer assédio sexual.
“Mesmo com a presença de outra mulher, a pessoa não recuou em nenhum momento, tentou contato físico comigo, pegou na minha mão como se fossemos íntimas, saiu do setor em que trabalha para ir me assediar”, relata.
Medo do julgamento e da denúncia
Ser assediada traz à tona uma série de micro agressões para a vítima, como o medo de não ter apoio, ser julgada, além do trauma ao relatar o caso.
“É algo extremamente desconfortável, fiquei me sentindo estranha e até pensando se em algum momento dei abertura para esse tipo de coisa. Tive um certo medo, porque sou nova na empresa e a pessoa é antiga, fiquei com receio de perder meu emprego”, conta Karine.
Mesmo receosa, a jovem disse que, com a ajuda de outra pessoa que presenciou o assédio, denunciou duas vezes o caso a sua superior. Ele repassou a denúncia ao gerente do setor que, conforme relata a vítima, apenas na segunda vez resolveu a situação.
Karine não chegou a registrar a denúncia ao MPT-AM/RR e não disse o motivo. Ela acredita que o assediador não teve punição, mesmo que o problema não tenha se repetido.
Além do medo da demissão, o julgamento e a falta de conhecimento também podem dificultar o processo de denúncia. É o que diz Amanda Pinheiro, advogada criminalista e Presidente da Associação Manas em Manaus.
“O número de registros é baixo porque as vítimas temem julgamentos, serem taxadas ou até mesmo perderem o emprego. Em algumas situações, as vítimas até procedem com a reclamação trabalhista buscando a indenização por dano moral, mas por falta de conhecimento ou orientação, não dão prosseguimento ao registro da ocorrência”, explica.
Consequências traumáticas do assédio
O mesmo caso aconteceu com Sarah (nome fictício para preservar a fonte), de 36 anos, que também não denunciou o caso ao MPT-AM por medo de perder o emprego. Ela conta que o colega de trabalho tocava em partes seu do corpo, dizendo que era em tom de brincadeira.
Entre as consequências, Sarah desenvolveu ansiedade, depressão, sociofobia, ataques de pânico e baixa autoestima. Apesar do apoio do chefe ao relatar o assédio, Sarah faz terapia até hoje e mudou de setor, para não ser julgada depois da violência.
Além dos diferentes tipos de assédio – verbal, físico e visual – as sequelas podem ser traumáticas para a vítima, conforme explica a psicóloga clínica Michelle Barbosa, proprietária do Instituto Menssana.
“O assédio sexual, na maioria das vezes, acontece com as mulheres. Pode ser de forma física, verbal e visual, todas causam algum trauma. Vem a ansiedade, a síndrome do pânico, a depressão, a fobia social, e o burnout”, enumera.
Não reagir a assédio não significa consentimento
Segundo a pesquisadora e professora na Faculdade de Ciências Sociais na Universidade Federal no Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Terezinha Martins dos Santos Souza, não reagir a um assédio não significa consentimento.
“O assédio se caracteriza por um cerco, uma construção de situações que obriguem a mulher a aceitar a abordagem ou, no caso negativo, permitam ao agressor persegui-la e penalizá-la, de formas diversas”, explica.
“Muitas vezes, as pessoas, majoritariamente mulheres, não estão em condições de reagir, por um conjunto de fatores. Mas a não reação não significa consentimento, ao contrário, revela o quão profundo e violento foi o assédio, que retirou da vítima qualquer possibilidade de reagir”, explica a pesquisadora.
Dados subnotificados não representam o Amazonas
Em Manaus, são 12.864 mulheres trabalhando, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Caged.
Para a titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra Mulher (DECCM), Debora Mafra, o número de denúncias é muito baixo e não representa a realidade amazonense.
“É uma quantidade baixa de denúncias. Isso ocorre porque muitas vítimas sofrem este tipo de crime e não tem coragem de denunciar. Também há dificuldade em comprovar com testemunhas. As estatísticas não representam a realidade”, pontua a delegada.
Para a representante do Amazonas na União Brasileira de Mulheres, Eriana Azevedo, o dado do MPT demonstra que é necessário trabalhar com medidas de informação que incentivem a denúncia.
“Esse dado do MPT surpreende. É importante lembrar que o assédio sexual também caracteriza uma relação de poder, ou seja, o assediador está em uma posição superior à vítima. Com esse dado da denúncia precisamos ainda mais, como sociedade, trabalhar com medidas de informação e da importância de romper esse ciclo”.
O combate ao assédio em empresas de Manaus
De 24 empresas de Manaus para as quais a reportagem solicitou informações sobre medidas, políticas ou projetos contra assédio sexual no trabalho, apenas quatro responderam.
A assessoria da Águas de Manaus, concessionária responsável pelos serviços de água, coleta e tratamento de esgoto da cidade, disse que a empresa é antiassédio e citou o programa corporativo chamado Respeito dá o Tom, que trabalha questões de raça e gênero entre os colaboradores desde 2019.
A Amazonas Energia, empresa responsável pela distribuição de energia de Manaus, disse que atua com um canal de denúncias, divulgação de informativos sobre condutas e realiza treinamentos sobre assédio e outros temas.
O Grupo DB de supermercados e a Agência Digital iMarketing, não possuem políticas específicas para casos de assédio. O grupo DB informou que incentiva as orientações do Código de Conduta. Por outro lado, a iMarketing disse ter câmeras de segurança que facilitam a investigação caso haja algum caso.
Empregador deve responder pelo assédio dos empregados
Públicas ou privadas, as empresas ainda têm dificuldades para pensar em políticas para lidar com assédio e violências. “Cabe aos empregados estabelecerem procedimentos internos para apuração dos fatos e punição, pois o empregador responde pelos atos do empregado. Em caso de omissão, essa empresa provavelmente pagará indenização a vítima”, explica a advogada Amanda Pinheiro.
Em nota, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismos (CNC), responsável por representar e defender as atividades econômicas do comércio brasileiro, afirmou que repudia qualquer conduta de assédio.
“A Confederação se empenha constantemente para construção e preservação do equilíbrio e respeito no ambiente e relações de trabalho, assim como reforça essas condutas juntos com seus representados.”
A Fecomércio Amazonas, que representa os empresários do setor do comércio de bens, serviços e turismo no Amazonas, informou que não tem dados para contribuir com a reportagem.
Legislação sobre assédio no trabalho
Uma medida do Ministério do Trabalho e Emprego – portaria Nº 4.219, em março de 2023, determinou que empresas de todo o Brasil incluam ações de combate ao assédio sexual e outras formas de violência nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes.
Os empregadores devem definir protocolos para o recebimento e o acompanhamento de denúncias, além de regras de conduta. Em caso de assédio, gravações telefônicas, cópias de mensagens eletrônicas, bilhetes e relatos de testemunhas servem como provas.
Elanny Vlaxio
Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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