No coração da experiência social do Morro do Fallet, em Santa Teresa, a Mangateca Comunitária é definida pelo seu criador, o fotógrafo Edson Cura, como uma “utopia”. E, de acordo com ele, não poderia ser diferente.
Criador do Anime DICRIA e da Mangateca do Morro do Fallet, Edson Cura revela interesse de patrocínio da maior plataforma de streaming de conteúdo asiático.
Nas prateleiras, de quatro a cinco mil exemplares de mangás. Nos corredores, mais de trinta crianças e adolescentes, semanalmente, divididos entre competições de leitura, desenhos e partidas de videogame.
“A Mangateca sempre foi um sonho de infância; ter uma biblioteca voltada para mangás e revistas em quadrinho. Hoje, a Mangateca é mesmo uma desculpa pra gente mudar o mundo. A gente só quer mesmo é ocupar a cabeça das crianças, levá-las para um caminho positivo”, avalia Ed.
O projeto começou há um ano. Em abril de 2022, Edson, que já tinha criado durante a pandemia a página Anime DICRIA, uma conta no Instagram que insere a cultura otaku na realidade periférica do Rio de Janeiro, passava as tardes na Feira da Glória recebendo mangás de pessoas que se interessaram pela ideia da Mangateca.
“Eu ficava ali para pegar os mangás, até porque muita gente não queria entrar na comunidade e nem tinha espaço pra tanta gente lá. Foi ali que começou a Mangateca. Aí eu pegava os mangás e levava tudo para a geladeira. Aqui na laje a gente tinha três geladeiras cheias, até que chegou um momento que não tinha mais como colocar mangá”, conta Edson.
“Quando já estava acabando a pandemia, aquela comemoração toda, a minha tia falou que queria fazer um churrasco. Ela precisava das geladeiras, e se eu não as liberasse, ela ia tacar fogo nos mangás. Eu precisei correr então!”
A partir de um financiamento online, Edson conseguiu juntar seis mil reais para alugar um espaço físico, mas as negociações com a dona do espaço levariam tempo.
“Ela achou que eu estava de sacanagem quando soube que eu ia fazer uma livraria na favela. Isso porque ela não sabia que eu nem ia vender livro, só ia emprestar”, gargalha.
“Dei sorte porque naquele momento pós-pandemia ninguém tinha dinheiro para alugar o espaço, e ela estava desesperada. Ela aceitou um ano, mas queria o pagamento à vista, e eu combinei de dar só os primeiros seis meses.”
As dificuldades de financiamento e a regularização como ONG
Antes mesmo de ter se tornado um ponto de referência no Morro do Fallet, enquanto os mangás ainda saíam das geladeiras, a Crunchyroll, maior plataforma de streaming de conteúdo asiático-oriental, se aproximou de Edson.
“Eles falaram que queriam patrocinar o projeto, e eu só pude pensar: ‘caraca, estou realizando um sonho!’. Só que a gente não era uma ONG, e não estávamos preparados para isso. Eles queriam resolver isso para ontem, contanto que fôssemos uma ONG, e foi aí que começou a dor de cabeça.”
De acordo com Edson, ele não fazia ideia de que teria que gastar quase dez mil reais no processo burocrático. “E era para gastar mais, mas como a gente foi tocando no coração das pessoas, do contador, do advogado, essa galera foi fazendo por amor, cobrando um preço super acessível, e nisso passou um ano. Viramos uma ONG mês passado. Ou a gente virava uma ONG, ou mantínhamos a Mangateca”.
O Anime DICRIA, bem como a Mangateca Comunitária, não são fontes de renda. “Nós vivemos de doação, de fato. Se gastássemos esse dinheiro logo de cara, íamos quebrar. Ficamos um ano nesse jogo de cintura entre regularizar ou não como ONG. Ainda estamos em alguma burocracia, mas já temos um CNPJ. Agora é a hora de negociarmos de novo com a Crunchyroll. O que me alegra é poder falar para eles: ‘estamos há um ano sem apoio de empresa nenhuma, e olha o que a gente fez, olha esses números!'”, comenta, acrescentando que, em um mês, as crianças pegam em média 120 mangás para ler.
Segundo Edson, a Panini também já demonstrou interesse em apoiar o projeto.
Os próximos passos para a Mangateca Comunitária fazem jus ao brilho nos olhos do seu criador.
“O que a gente pensa em fazer com a Crunchyroll é criar um instituto gigante. A nossa meta é fazer como se fosse uma universidade dentro da comunidade!”, conta Edson. “A gente quer mesmo é incentivar as crianças a ser o que elas quiserem, a sair dessa caixa de ‘você é periférico, você tem que falar sobre funk e futebol’. Elas podem falar sobre qualquer coisa”.
“Eu passei vinte e cinco anos me sentindo um Naruto, que é o que? Nasci na comunidade, todo mundo me via como um demônio, ninguém tinha a compaixão de dialogar comigo, todo mundo tinha medo de mim, e eu podia ser certamente um vilão, e sair destruindo tudo. Mas como eu tenho o Naruto como referência, eu pensei ‘vou virar o Hokage [um título de grande importância dentro do enredo do anime] dessa parada'”, diz Edson.
“Antes, isso era só um sonho, e eu achava que nem tinha talento para nada. Mas quando as pessoas começaram a parar para me escutar sem medo, sem esconder o celular ou ficar na defensiva, eu senti que tinha nascido de novo. Percebi que era possível sonhar. Eu sei que não vou conseguir salvar o mundo, mas pelo menos consegui salvar o meu mundo, e quero continuar salvando o dessas crianças.”
Colaboração: Rodrigo Reichardt e Jéssica Lima