Depois das escolas de samba terem se tornado refúgio de bicheiros e políticos fisiológicos e outros padrinhos que a protegiam do próprio Estado que eles representavam ou transgrediam. E também o candomblé ter se tornando uma espécie de quilombo acadêmico, agora temos a classe média invadindo o jongo, o maracatu, a capoeira e o que mais? Gritar, denunciar é o primeiro passo. Aliás, esse grito, como diria o saudoso Abdias, é uma catarse! E daí? Eu pergunto. quando abro o discurso há quem diga que exagero. Será exagero ou uma questão de direito?
Segundo o jornalista Ras Adauto, militantes da Cultura Negra estão levantando a questão sobre a apropriação, invasão e capitalização e lucros da Cultura Negra pelos brancos no Rio de Janeiro, sem o devido retorno necessário e de direitos às fontes de origem. O assunto é quente e polêmico. E está começando a incomodar muito dos Setores dos Movimentos Sociais Negros .
Abaixo um comentário de Julio Chrystor Mendes, um dos grandes ativistas da cultura e da música negra no Rio de Janeiro:
“Quando assisti Wattstax, pela primeira vez exibido no Brasil, no MAM vi nas arquibancadas dos estádios muitos brancos e fiquei espantado. Conversando com alguns dos nossos líderes negros no momento, ouvi que brancos que andavam com negros eram, pelos racistas, considerados negros, assim como os que namoravam, casavam, curtiam ou tocavam música negra, moravam em bairros tipicamente negros, ou simplesmente eram muito pobres.
E isso fazia com que os brancos realmente incorporassem os valores e as lutas do povo negro. Aqui, no país da igualdade racial, eles aprendem com a gente, rezam, tocam, dançam, bebem, etc. até a hora em que se acham auto-suficientes o bastante para ocupar os nossos lugares cientes de que o Poder prefere ver a sua cor na mídia.”
Ras Adauto cita como exemplo que as entidades carnavalescas negras tem a maior dificuldade de acessarem os recursos do estado e do município para as suas manifestações e cada vez mais estão sendo alijadas desse grande movimento de blocos carnavalescos do Rio de Janeiro, comandados por brancos de classe média.
Para ele as entidades carnavalescas negras então estão sendo substituídas por entidades brancas com nomes e manifestações travestidas de “negras”: maracatu, jongo, etc. Ele lembra que há um bloco “brancoafro” que já saiu o ano passado com seus componentes todos pintados com a cara de piche (preta).
E por conta disso mesmo, ele implora que o respondam a pergunta que não quer calar:Qual é o filtro, o critério que restringe tanto a participação de negros nesses blocos de carnaval do Rio de Janeiro?
O professor da Uerj e mentor do grupo Projeto Musikfabrik Spirito Santo também elenca perguntas sobre o fenômeno “Cultura negra sem negros” que se acentua sempre no Carnaval.Para ele, os envolvidos estrilam revoltados, mas não explicam. Reduzem a questão a respostas evasivas do tipo, “os negros não curtem mais sua própria cultura”.
Spirito Santo ressalta o aspecto mais candente da pergunta: Se estamos tratando de manifestações especificamente de cultura NEGRA, como explicar a ausência de negros nelas?
Segundo ele, a simples recusa dos negros de delas participar não parece pertinente. Colocar a culpa na eventual vítima não é uma atitude desculpável. Óbvio que eles, os ‘negros’ (ele pede por favor que entendam a amplitude do conceito) estão sendo, por alguma, ou várias razões impedidos, excluídos dessa festa.
Para Spirito Santo este seria o cerne da pergunta. Faltam respostas.
Sabemos de alguns dos expedientes de exclusão social existentes no Brasil, mas de onde surgiu, o que estimula esta predileção tão acentuada destes grupos, majoritariamente brancos, EXATAMENTE por cultura NEGRA e, por quais expedientes afinal, negros -e pobres – estão sendo excluídos ou desestimulados de participar desta festa?
Mais ainda, no mesmo sentido, como ocorre este fenômeno desses grupos se manterem sempre – e cada vez mais – majoritariamente, seletivamente brancos, num ambiente, francamente aberto destas manifestações de rua, numa cidade de população tão expressivamente negra ou NÃO branca?
Outro aspecto muito importante é o caráter de mercantilização acentuada que estas manifestações de cultura negra SEM negros vão assumindo, as suas ligações já tão estreitas com os interesses comerciais de uma Prefeitura, que gere a cultura da cidade como uma empresa capitalista. Infelizmente, faltam respostas.
Como explicar a eventual existência de interesses ocultos e muito pouco éticos na proposta de alguns desses grupos, interesses estes bem distantes deste alegado ‘amor à cultura negra e popular’, longe das meritórias e ‘desinteressadas’ justificativas dos defensores da lisura destes propósitos, cheios de ‘responsabilidade social’ remunerada.
Para o jornalista Ras Adauto tal fenômeno fica parecendo uma ação típica de predadores culturais, algo aliás, típico da sociologia brasileira, tão marcada pelo pragmático oportunismo de sua elite.
A cultura popular, a das ruas, deveria refletir a diversidade social (e/ou ‘racial’) das ruas. Esta seria a lógica de qualquer sociedade democrática. Se isto não está ocorrendo algo está errado. Estas coisas não acontecem por mero acaso. Não são desígnios ocasionais de um Deus excludente.
Talvez fosse a hora das pessoas de boa fé encararem de frente esta indesculpável iniquidade.
Mas isso se tornou um costume cultural: a “elite branca” sempre faz isso com os ritmos nascidos da alegria e do sofrimento negro.O povo negro cria o ritmo, o branco proíbe. Depois ele o assimila e devolve ao negro mal feito e caro. Os exemplos,muitos, estão ai pela historia;lundum,samba,capoeira, Funk. E se percebe que por um lado, cada vez mais a elitização dos elementos culturais afro brasileiros torna tudo mais caro, afastando quem primeiro criou as tradições, e por outro, acaba por piorar sua qualidade.
Há o exemplo do carnaval de Salvador, que com a “evolução” do seu carnaval, de uma democrática festa de rua para um negócio milionário, paralelamente à expansão do “Axé Music” para todo o Brasil, através do sucesso das principais bandas e das micaretas, a economia cuidou de criar o apartheid entre os que podem e os que não podem pagar para ficar dentro da área isolada pelos cordeiros – os “seguranças”, todos negros, que garantem a festa “tranquila” da “gente diferenciada” da Bahia e do resto do País.
A foto abaixo ilustra bem o que é o apartheid carnavalesco na capital da Bahia, o que certamente se reproduz em outros carnavais pelo país afora.
Para Ras Adauto existe uma lógica clara no Brasil em relação a isso: eliminam-se os corpos, mas se apropriam de suas culturas, artes e saberes. È o que acontece com as nações indígenas.
Ele lembra que desde o momento que figuras ativas do movimento indígena, como Ailton Krenak, Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Raoni, Megaron, só para ficarmos nos mais conhecidos, começaram a questionar antropólogos e outras figuras de se apropriarem das matrizes aindígenas foi um bafafá.
Por isso que ele acha que devemos levantar essa discussão, ampliá-la e começarmos organizar ações concretas contra isso. E também questionar os tais Conselhos Negros embutidos nesses governos federais, estaduais e municipais a se manifestarem, pois ficam ali na caluda, ou não agem rapidamente quando se precisam, como se esses temas não dizem respeito a eles ou não são prioritários.
Para ele o movimento negro e sua entidades tem que sair dessa letargia e botar a “máquina preta” para funcionar. Ele ressalta que algo assim também está acontecendo na Alemanha e em vários lugares da Europa, isto é, os “Branquim” aprendem com brazucas as artes e artemanhas e depois tomam a direção da coisa”
Há além da apropriação, da tomada de direitos e saberes, ocorre também a paternalizacão por parte do Estado e de algumas empresas desses conhecimentos e praticas culturais.
Pois uma coisa é quando o filho do patrão escuta o samba que a empregada canta, e depois o reprocessa, dilui e pasteuriza, dando o nome de “samba de raiz”. Ou quando a cantora baiana pesquisa o samba de roda, para tocar este para os que tem R$1000,00 e pagam o abadá. Outra coisa é o uso dessa cultura descontextualizada e asséptica.
Para Tibiriçá Da Costa Bouças professor da Universidade Católica de Brasília, o problema não seria somente a participação, o compartilhamento, a curtição, e sim, a apropriação indébita e a gestão do criar negro.
A pergunta que fica é: Tem branco no Samba, mas cadê o Negro?
Maximiano Laureano da Silva.