Os turistas ao conhecerem o bairro da Liberdade, em São Paulo, associam a região à história do Japão no Brasil, principalmente se visitarem o museu histórico da imigração japonesa, na rua Joaquim Silva. Além disso, o bairro paulista exibe as famosas lanternas vermelhas e brancas que decoram as ruas, bem como dezenas de restaurantes e estabelecimentos comerciais que nos dão a impressão de estarmos na terra do sol nascente.

No entanto, no bairro aparentemente japonês, numa estreita rua sem saída, a rua dos Aflitos, uma pequena e antiga capela, notadamente necessitando de restauro, desperta nossa atenção.  A princípio, o visitante pode achar que se trata de mais uma igreja católica paulistana, mas naquele lugar há uma história de luta e que nos dias atuais assumiu papel de extrema importância no combate ao apagamento dos povos negro e indígena, na cidade de São Paulo. Trata-se da Capela Nossa Senhora dos Aflitos, erguida em 1775, sobre um terreno sagrado, o primeiro cemitério público de São Paulo, onde eram sepultados negros, indígenas, escravizados, pobres, indigentes e os condenados à morte pelo Império Português.

A cela onde teria ficado Chaguinhas: ritual de fé há mais de 200 anos.

A luta para preservação da memória e restauro da capela é grande, e está encabeçada pela Associação dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA). Em 2022, o processo de restauro foi aprovado pela Cúria da Arquidiocese de São Paulo. “Liberdade não é um bairro japonês. Desde aquela época, o bairro era periferia, e tudo o que o Império não queria, empurrava para cá, e aqui surgiu o primeiro cemitério público para os negros, indígenas, escravizados e os condenados à forca”, afirma com orgulho, Emília Ribeiro, integrante da diretoria da UNAMCA.

Nossa reportagem participou da visita feita pelos estudantes da Faculdade de Ciências e Tecnologia (UNESP), do Campus de Presidente Prudente, a 546km de distância da capital Paulista, e da cidade de Rosana, há quase 800 Km, quando realizaram um circuito étnico pelo Bairro da Liberdade, conhecendo sua verdadeira história marcada pela exclusão racial e social.

Estudantes da UNESP de Presidente Prudente e Rosana percorrem as ruas do bairro da Liberdade.

A estudante Valquíria dos Santos Freitas, que faz parte do Núcleo Negro de Pesquisa de Extensão da UNESP, de Presidente Prudente, (NUPE), conta que a visita ao bairro é o resultado de um projeto que o núcleo faz contra o apagamento do povo negro em sua universidade. “O NUPE é um grupo que realiza estudos antirraciais dentro da universidade, desde de 2000, e nós buscamos contar a história do povo negro de dentro para fora, porque há muitos anos ela é contada de fora para dentro. No bairro da Liberdade há um processo de apagamento histórico, e este lugar não tem nada a ver com a história do Japão, tem a ver com a história dos negros, a gente veio buscar nossa história, a história do Brasil e África”.

Chaguinhas

Um fato histórico que marcou definitivamente a região foi a morte de Francisco José das Chagas, mais conhecido como Chaguinhas, homem negro que era cabo do Primeiro Batalhão de Santos no período do império português. Chaguinhas foi um dos líderes de uma revolta que reivindicava remunerações atrasadas há pelo menos cinco anos, e igualdade de valores no pagamento para os militares brasileiros e portugueses. Acabou preso e condenado à forca no ano de 1821.

O enforcamento acabou imortalizando Chaguinhas e reza a lenda que o fato deu nome ao bairro. O Padre Diogo Antônio Feijó, que testemunhou o evento no Largo da Forca, hoje Praça da Liberdade, nos fundos da atual Catedral da Sé, relatou na ocasião: “Vi com meus próprios olhos a execução do cabo Chaguinha, que se deu antes do julgamento do pedido de clemência feito ao príncipe regente, D. Pedro I. Ao iniciar o enforcamento, o cabo caiu porque a corda se rompeu. Como não havia corda própria para enforcar, usaram laço de couro, mas o instrumento não foi capaz de o sufocar com presteza. A corda novamente se partiu e o condenado caiu ainda semivivo; já em terra foi acabado de assassinar” . Após a forca falhar três vezes, o povo teria gritado por “Liberdade”.

As lanternas japonesas que não conseguem apagar uma história.

O caminho da reparação

A Capela dos Aflitos é hoje um símbolo de resistência e ao mesmo tempo de fé. Nas frestas da sua porta, as pessoas escrevem e depositam pedidos, em pedacinhos de papel, batem três vezes na madeira, além de acenderem velas junto à cela em que Chaguinhas teria ficado preso, antes da execução, ritual de fé que já dura há mais de dois séculos.

Quando, em 2018, as obras da construção de um shopping sobre o terreno onde havia o cemitério foram embargadas pelo falecido prefeito Bruno Covas, além de trazer à luz nove ossadas humanas, revelou também uma importante história que estava correndo o sério risco de ser apagada, mas que agora poderá ser preservada para as gerações futuras com a restauração da Capela dos Aflitos e a construção do Memorial dos Aflitos, o primeiro espaço de memória e verdade sobre a escravidão e o povo indígena, na cidade de São Paulo.

O custo total da restauração da capela e construção do memorial ainda estão em fase de definição, mas há uma estimativa de R$ 2 milhões de reais, informa Lucas Almeida, graduando em Museologia pela Universidade Federal da Bahia e integrante da UNAMCA, que foi o guia quem conduziu o estudantes da UNESP pelo bairro da Liberdade, contando sua história de resistência.

“O restauro está em fase de finalização dos projetos, cuja responsabilidade é Arquidiocese de São Paulo, em conjunto com a sociedade civil e órgãos de preservação do patrimônio. Esse é um patrimônio que é importante para todo o povo brasileiro, e não somente para os povos negro e indígena”, diz Lucas Almeida.

Ao visitar o bairro da Liberdade, em São Paulo, tenha a certeza de que você está numa região onde os povos negro e indígena foram vítimas de violência, exclusão e tentativa de apagamento, mas que agora encontra na aparente rua sem saída dos Aflitos, um caminho aberto para a necessária reparação de um passado manchado de sangue, discriminação e injustiças.

(Texto e Fotos de Francis Ivanovich)