MEDO E ESPERANÇA NO RIO DE JANEIRO

Ocupação de favelas como tragédia e como farsa

Os acontecimentos dos últimos meses no Rio de Janeiro relacionados às ações de traficantes de drogas que estariam supostamente fazendo retaliações à implantação das UPPs em favelas cariocas só não chamaram mais atenção do que a resposta dada pelas forças do Estado em nível estadual e federal. Uma mega-operação foi executada acuando mais de cem homens armados na favela Vila Cruzeiro, um dos pontos estratégicos do Comando Vermelho no Rio de Janeiro, que serve de paiol e ponto de estocagem e distribuição de drogas para outras favelas do mesmo grupo criminoso.

A ação da polícia foi rápida e concisa. Demonstrou todo o preparo que as forças especiais das forças policiais do Rio de Janeiro tem e a capacidade de se integrar forças policiais e militares.

Muitos observam com satisfação toda essa agitação pensando que este é o momento decisivo, já que o Estado finalmente tomou uma providência contra os soldados do tráfico, uma providência a altura, com armamento pesado como nunca visto antes! Será mesmo?

Se forçarmos nossa memória um pouco, talvez nos lembremos que na década de 90 houve pelo menos três mega-operações como esta de agora: o plano de segurança para a ECO-92, a Operação Rio (1994) e a Operação Rio 2 (1995). Embora não tenham sido as únicas operações, essas são as que mais marcaram o histórico da segurança pública. É verdade que existem certas diferenças, pois na operação ECO-92 a ação foi preventiva. O que queremos lembrar é que esta não é a primeira nem a segunda vez que se coloca as Forças Armadas, no atual caso a Marinha do Brasil, para executar as funções da polícia. Na verdade, ainda na ditadura civil-militar de 1964 canhões foram apontados para dentro da favela do Jacarezinho na busca de subversivos de partidos de esquerda e grupos revolucionários.

Vale lembrar que o filósofo alemão Karl Marx já nos alertava que a história ocorre duas vezes: uma como tragédia e outra como farsa. O que ele quis dizer com isso é que quando um evento ocorre pela primeira vez é uma tragédia por não ser previsto, não havendo muitos recursos para evitá-lo. É como se a sociedade fosse pega de surpresa. Entretanto, se governos já sabem da possibilidade de ocorrer coisa semelhante no futuro e pouco ou nada fazem para evitar, estamos de frente a uma farsa. Pergunto então ao leitor: os últimos eventos parecem mais uma tragédia ou uma farsa?

Seria o tráfico de drogas uma atividade de escambo?

As quantidades de drogas e armas apreendidas pela operação de enfrentamento aos traficantes são assustadoras. Toneladas de drogas e centenas de armas de todos os portes e molhares de unidades de munição. Isso me levou a pensar: será que o tráfico é uma atividade de escambo? Para quem se desacostumou com essa palavra em pouco uso nos dias de hoje, já que tudo é comprado em nossa sociedade, o escambo é uma relação econômica baseada na troca de mercadoria por mercadoria, sem o intermédio do dinheiro.

O que me causa espanto é que até o momento a grande mídia só reportou a apreensão de pouco mais de 75 mil reais (em dólares e reais). Se entendermos que esse valor não deve ser suficiente nem para as propinas que os traficantes pagam e que mais nenhum dinheiro foi achado cheguei a pensar que então os traficantes troquem drogas por armas, ou o contrário.

Seria então que todos os pontos de venda já estejam informatizados e usando máquinas de débito automático?

Bem, a questão é que um negócio bilionário como o tráfico de drogas ao ser atingido em cheio pelo estado deve perder uma quantidade considerável de dinheiro, que até agora, não se sabe não se viu. Devemos lembrar que esse dinheiro segundo o governo será usado para custear ações sociais em favelas de prevenção e combate ao crime.

Ao mesmo tempo crescem na mídia as denúncias de assaltos e saques aos moradores da Vila Cruzeiro do Morro do Alemão feitos por policiais, como mostrado no blog do Jornalista Paulo Henrique Amorim.

(http://www.conversaafiada.com.br/video/2010/11/30/video-morador-da-vila-cruzeiro-acusa-policia-de-roubo/)

Mais recentemente começam a surgir denúncias mais graves que comprovam, através da própria Polícia Federal, que a ocupação foi executada junto com uma operação de saque feita pelos agentes da lei, como aparece na reportagem da Veja, disponível no link abaixo.

http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/grupo-e-acusado-de-envolvimento-em-desvio-de-dinheiro-durante-a-ocupacao-do-compelxo-do-alemao

Ainda assim, é bom notar que até esse início de mês pouco se falou sobre o não aparecimento do dinheiro. Foi preciso ser deflagrada toda uma operação da Polícia Federal para que a imprensa tocasse no assunto. Fácil compreender: uma denúncia desse porte faria a sociedade pensar se esse é o melhor meio de agir.

Se esses questionamentos povoassem os noticiários há um ou dois meses, provavelmente a população carioca e até mesmo organizações internacionais fariam maiores pressões sobre o governo.

Não tenham dúvidas, quem tem o maior interesse nessas atividades são os grandes empresários que investiram milhões de dólares nesses eventos esportivos, esperando, lógico, grande retorno financeiro. Não nos enganemos com o discurso de que esses eventos trarão investimentos na cidade! Esses investimentos pouco são revertidos para a população, a exemplo dos Jogos Panamericanos, dos quais presenciei próximo ao meu bairro de residência uma vila olímpica no Mato Alto (R.A. de Jacarepaguá, entre Praça Seca e Tanque) que foi inaugurada somente no ano passado, muitos anos após o término dos jogos. Sabem por qual motivo tanta demora? Simples: essa vila olímpica atende apenas os moradores da localidade. Ela não tem nenhuma finalidade de mercado, ao contrário da Vila do Pan, que foi loteada e seus apartamentos vendidos a preços altíssimos.

Com vistas a esses investimentos entendemos porque uma operação dessas não poderia ser interrompida pela pressão popular e, por isso, não deveria se questionar na grande mídia a forma como foi executada.

Onde está o dinheiro do tráfico e o dos moradores? O senhor Secretário de Segurança do Rio de Janeiro nos deve uma explicação convincente sobre o assunto, ou será que ele vai esperar a Polícia Federal descobrir?

Reality show de sucesso: medo e esperança no Rio de Janeiro

Não suficiente a onda de ataques a veículos por criminosos envolvidos com o tráfico, e digo dessa forma, pois, muitos desses criminosos também se envolvem com outros tipos de crime, as maiores empresas de comunicação brasileiras agiram de forma oportunista e sensacionalista na cobertura dos eventos. Maior destaque para a Rede Globo que transmitiu mais de quatro horas ininterruptas da operação conjunta das forças armadas e das polícias do Rio de Janeiro na Vila Cruzeiro. Deixou de transmitir vários programas e até mesmo as chamadas comerciais, a fonte de renda da emissora.

As imagens de mais de duzentos homens portando armas de diferentes calibres foram transmitidas para todo o território nacional quase em tempo real. O resultado é a propagação do medo generalizado. Medo e, em alguns casos, histeria coletiva.

A onda de boatos sobre ataques borbulhou no Rio de Janeiro. Alguns boatos e outros eventos de histeria coletiva. O melhor exemplo foi o do Calçadão de Bangu, oqual fui testemunha ocular. Observei um grupo de 50 pessoas correrem desesperadas por causa de um arrastão que não existiu. Diz-se que tudo ocorreu por causa de um batedor de carteiras que teria agido e então alguém gritou arrastão. A partir daí se gerou um alvoroço. Seguro de que nada estava ocorrendo de perigoso na realidade me conti e não segui a multidão, optando por averiguar a situação para tomar a decisão mais acertada naquele momento de tensão. Quando observo melhor vejo que há uma patrulha da PM próximo a mim, estacionada e sem ser ativada. Ficava claro que não era real o perigo imediato.

Mais tarde na internet já havia versões de que passaram no calçadão mandando fechar as lojas e soltando uma fumaça preta.

Assim também ocorreu com elementos positivos. Uma onda de otimismo inundou a mídia e as redes sociais. As emissoras de televisão, após a tomada da Vila Cruzeiro passaram a transmitir repetidamente o testemunho de moradores da favela sobre a esperança em dias melhores e de que essa operação era necessária.

O primeiro acontecimento merece uma observação mais apurada, pois parece ser mais importante.

O linguista Noam Chomsky nos alerta para o fato de que o Estado se utiliza da mídia de massa para transmitir seus valores e interesses, que na verdade são os valores e interesses daqueles que estão no topo da sociedade como industriais, banqueiros e grandes empresários. São os interesses desses cidadãos que são colocados na frente dos nossos, por isso a falta de investimento em saúde e educação, pois esses membros da sociedade não precisam desses serviços públicos, que são de interesse dos trabalhadores.

Na verdade, a imprensa de porte, como a Rede Globo, Record, Band e SBT não só defendem os interesses dos ricos, mas também constrói na mente do telespectador um conjunto de ideias que faz parecer serem justas e necessárias as ações executadas pelos políticos ao defenderem os interesses da classe alta. E sabem qual é a principal ferramenta de convencimento usada pela imprensa? O medo.

Em um de seus livros, intitulado “Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda”, Chomsky dá o exemplo de como o governo de George Bush com o apoio da mídia dos Estados Unidos convenceu a população deu que Sadam Hussein era um inimigo da maior periculosidade para o país. Os cidadãos convencidos realizaram o maior esforço que um pai e uma mãe podem fazer: entregar seu filho à guerra. Milhares de jovens, a maioria pobre, foram enviados ao Iraque para combater um inimigo que nunca atacou os Estados Unidos.

Vale dizer que essa campanha de guerra ocorreu em resposta aos ataques terroristas de 11/09. Com toda a nação em pânico com esse desastre foi muito mais fácil convencer o povo do perigo que Sadam Hussein representava, pois o povo se esqueceu de que tanto o Talebã quanto Sadam chegaram ao poder com o apoio dos EUA.

Milhares de pais viram seus filhos embarcarem para a guerra e retornarem em caixões.

Se em nosso país a situação é diferente, pois ao contrário do que muitos sensacionalistas gostam de expor nosso estado não está em guerra, com relação ao uso da mídia pelo Estado e pelas classes altas não é muito diferente.

Os ataques dos grupos criminosos em todo o estado foi o pavio que iniciou o incêndio. A exibição das imagens de mais de centena de homens carregando armas de diversos calibres durante mais de quatro horas sem interrupção foi o combustível. Com a junção desses elementos foi armado o palco para mais uma farsa da segurança pública carioca.

O que há de pior nisso tudo é como ocorre a articulação para fazer o cidadão comum aceitar como razoável a ação brutal e descuidada das forças de segurança nos lugares de moradia dos pobres. A disseminação do medo aumenta a sensação de insegurança até níveis de histeria coletiva, como no caso do calçadão de Bangu. Escolas foram fechadas, comércios baixaram suas portas, pessoas deixaram de sair de suas casas. Havia sim o risco, mas que fique claro que o maior risco era para aqueles que moram em favelas.

De acordo com os principais jornais de grande circulação o número de mortos durante os ataques dos grupos criminosos gira em torno 50, sendo que mais de trinta ocorreram em confronto direto com a polícia, ou seja, os ataques não foram feitos diretamente à população, mas sim com a função de passar uma mensagem, o que não discutiremos aqui por não ser a intenção deste artigo.

Gostaria de deixar claro também que não estou justificando nem aprovando muito menos minimizando a gravidade das ações criminosas! Elas devem ser coibidas e punidas, o que se discute aqui é a forma com a segurnça pública é utilizada para diversos interesses e quase sempre os interesses das classes média e alta.

Quando estamos encurralados e com nossas vidas ameaçadas não pensamos sobre os fatos, não raciocinamos. Nesses momentos somos tomados por um impulso de sobrevivência que fala mais alto que qualquer coisa. Nos momentos de desespero nos esquecemos de quantas operações policiais já foram executados com auxílio das Forças Armadas, quantos inocentes morrem nessas operações ou mesmo por que um jovem de 17 anos que poderia ser um parente meu e seu opta por ganhar em média R$ 2.400 por mês arriscando sua vida em confrontos com a polícia e com grupos criminosos rivais.

Nos momentos de pânico nos esquecemos que a maioria das pessoas que optam por essa vida de crime o faz por não ter perspectiva de um salário digno, pois muitos não se conformam e ganhar um salário mínimo. Não estou justificando a escolha do caminho do crime, mas devemos refletir que país é o nosso no qual pedir esmola na rua pode garantir uma valor até três vezes maior que um salário mínimo.

Nos momentos de pânico nos esquecemos que filho de rico não troca tiro com a polícia e que traficantes de droga sintética como êxtase e ácido não tem suas casas da Barra da Tijuca e Zona Sul arrombadas sem mandado de busca.

Nos momentos de medo, nos esquecemos que as operações ECO-92, Rio e Rio II tiveram resultados apenas imediatos e que a criminalidade continuou a atingir a população carioca logo depois.

Por nos esquecermos de tudo isso não questionamos porque nas favelas a polícia não usa mandado de busca o então usa mandado coletivo ou porque essas medidas são tomadas apenas nos bairros dos trabalhadores pobres.

Devemos nos lembrar que nos aproximamos dos mega-eventos esportivos da Copa do Mundo e das Olimpíadas. “Coincidentemente” passamos por um período de expansão das UPPs, só que agora, menos de três meses após as operações da Zona Norte do Rio, pouco aparece nos grandes veículos de informação como tem sido executadas as constantes incursões da polícia em favelas cariocas que seguem hoje. Não precisamos de Capitães Nascimento falando para botar na conta do Papa. Não precisamos e não devemos aceitar.