A artista visual e grafiteira Fany Lima, @ste_fanylima, transformou a fachada de um prédio na Rua Francesco Ciampi, nº 80, no bairro da Fazenda da Juta, em São Paulo, em um símbolo da luta das mulheres negras por justiça, direitos e equidade social. Com o megamural “Sem Medo no Coração”, que ocupa 130 metros quadrados, a artista entrelaça a simbologia ancestral do Tarot, elementos do imaginário afro-brasileiro e referências a movimentos históricos de resistência. A obra, que integra o projeto Museu de Arte de Rua (MAR), promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo, é um chamado à liberdade, com ênfase nas questões de gênero, raça e ancestralidade.

A obra, que reúne a inspiração na Carta da Justiça do Tarot, elementos do imaginário afro-brasileiro e referências aos movimentos históricos de resistência pela luta dos direitos das mulheres negras, está situada em um bairro periférico da cidade de São Paulo

O tarot e a justiça como inspiração

A obra tem como ponto de partida o arcano “A Justiça”, a 11ª carta do Tarot Smith-Waite. A escolha dessa simbologia não é por acaso. Ilustrada por Pamela Colman Smith no início do século XX, a carta representa, desde sua criação, uma reparação histórica: por décadas, o talento de Pamela foi ofuscado pelo nome de Arthur Edward Waite, organizador dos significados do baralho. Fany resgata essa história para abordar questões que vão além do individual, questionando direitos universais e coletivos.

“Meu interesse pelos baralhos surgiu como uma busca entre o artístico e o oracular, atraída pela sua riqueza estética e simbólica, que consegue entrelaçar conceitos complexos a imagens simples e cotidianas. A cartomancia é uma prática ancestral na Jurema Sagrada, que me leva a acreditar que nossas mãos são poderosos instrumentos de criação, cura e conexão. Tudo que fazemos com elas carregam um tanto da nossa magia. Então acredito que nessa obra consegui reunir de forma equilibrada um conjunto de referências que compõem minha vivência”, conta a artista Fany Lima.

Símbolos afro-brasileiros

No centro do mural, Fany reinterpreta a ilustração original de Pamela, que retrata a figura de uma mulher branca simbolizando a Justiça. Na nova versão, a artista substitui essa representação por uma mulher negra, sentada em uma cadeira de plástico amarela, inserida em um cenário típico do cotidiano das periferias.

“É uma forma de deslocar o conceito de justiça deste lugar distante e torná-lo mais próximo do cotidiano, do comum, das ruas e esquinas, onde ela possa alcançar qualquer pessoa, especialmente os meus. Nem por isso a Justiça perde sua imponência, pelo contrário, ela ganha um novo significado de força e ação”, reflete a artista.

A figura central empunha duas espadas – uma de Ogum e outra de Iansã, orixás que representam força e proteção nas religiões de matriz africana. Em sua outra mão, ela segura uma balança que sustenta um coração, tão leve quanto uma pena, evocando Maat, a deusa egípcia da verdade e da justiça. Ao fundo, o machado de Xangô, com suas lâminas duplas, reforça a conexão com a cosmovisão iorubá e com o candomblé no Brasil, compondo um diálogo profundo entre o visual e o espiritual.

“Minhas referências vêm da vivência espiritual e cultural”, diz Fany, que foi iniciada para orixá no Ilê Axé Ketu Egbé Oní, em Embu das Artes (SP). Em Recife desde 2016, mergulhou no candomblé e na Jurema e virou juremeira no Ilê Axé Alaketu Oyá T’Ogun, no Quilombo do Catucá, em Camaragibe (PE). É nesse terreiro, que também funciona como centro cultural, que ela encontra inspiração para grande parte de sua produção artística.

A liberdade de não ter medo

A obra também homenageia mulheres negras que abrem caminhos nas encruzilhadas da vida, como Marielle Franco, representada na placa “Rua Marielle Franco”. Outras referências incluem o filme Poetic Justice, com Janet Jackson e Tupac Shakur, e a frase marcante de Nina Simone: “Liberdade é não ter medo”. Para Fany, a liberdade representada na obra transcende a ausência de opressão:

“A liberdade e a justiça andam lado a lado, principalmente no contexto histórico e social do nosso povo, das periferias brasileiras. É sobre lutar pelo que acredita, mas também pelo direito de ser quem se é, pelo bem viver”.

Raízes nordestinas

Localizado em uma região historicamente marcada por desafios socioeconômicos e fundado por migrantes nordestinos em 1977, o megamural “Sem Medo no Coração” dialoga com a identidade do bairro. A própria história de Fany está profundamente ligada a essa migração. Filha de pais nordestinos, a artista nasceu em São Paulo em 1996, mas foi na periferia de Embu das Artes, cidade marcada por sua rica herança cultural e figuras como o recifense Solano Trindade, que ela cresceu. Solano, uma de suas maiores inspirações, deixou uma marca indelével em sua trajetória:

“Carrego comigo até hoje a frase dele que inclui na defesa da minha graduação em artes visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): ‘Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte’”.

Essa conexão com o Nordeste se aprofundou quando ela se mudou para Recife, aos 20 anos, onde consolidou sua atuação no Movimento Hip Hop e ampliou suas referências culturais.

Trajetória da artista

Fany Lima, que começou a pintar nas ruas em 2013, tem se consolidado como uma das artistas mais significativas do cenário da arte urbana no Brasil. Suas obras atravessam suas vivências e abordam temas como ancestralidade, memória, gênero, espiritualidade, imaginário urbano-periférico, cosmovisões de terreiro (candomblé e jurema) e cultura afrodiaspórica. Seu portfólio inclui megamurais como “Congênito” (2023), inspirado em Luiz Melodia, e “Nossa Rainha Já se Coroou” (2023), realizado em parceria com Nathê Ferreira em Recife. Em “Via Arterial” (2021), sua primeira grande obra pós-pandemia, Fany retrata as dualidades da vida cotidiana em São Paulo.

Além da arte urbana, a artista participou de importantes exposições coletivas, como “Abolicionistas Negras”, no Museu de Arte do Rio (2024) e “Mulheres que Mudaram 200 Anos”, na Caixa Cultural Recife (2023). Sua atuação também inclui ilustrações de figuras históricas negras para livros e projetos. Em Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes: 100 Brasileiras Extraordinárias (2022), retratou a jogadora de futebol Formiga e a atriz Ruth de Souza. Para o Alma Preta Jornalismo (2021), criou retratos de seis mulheres negras que marcaram a luta pela abolição: Aqualtune, Maria Firmino dos Reis, Esperança Garcia, Adelina (a Charuteira), Tereza de Benguela e Maria Felipa de Oliveira.

Ficha técnica
Megamural Sem Medo no Coração
Artista: Fany Lima (@ste_fanylima)
Produção: Germina Produções(@germinaproducoes, @leticia.msou e @amanda_1711)
Assistência artística: Osù (osu.ttt) e Simo (@umsimo) Fotografia e vídeo: Nego Junior (@negojunior)
Assessoria de imprensa: Raynaia Uchôa (@raynaia)
Projeção: VJ Mole (@vjmolejunglist)
Bombeiro Civil: Bruno Assis (@bruno.assisdasilva)
Síndica: Margarete Ferreira (@maga_ferreira)
Moradora/Recepção: Leonida Bezerra Leite de Oliveira
Este projeto foi realizado com recursos financeiros do Projeto MAR – Museu de Arte de Rua – Edital n° 08/2024/SMC/CPROG – Secretaria Municipal de Cultura – SP (@smculturasp)