Andando a pé pelas cidades brasileiras o pedestre ou “flâneur” espanta-se e é tomado rapidamente pela
ideia que a cidade parece um queijo suíço. O leitor, logo, imaginará um vinho chinelo e o sabor do queijo
suíço. Não é disso que se lembram aqueles andam pelas avenidas, ruas, becos e vielas das cidades de
Brasília, mas dos famosos furos do queijo suíço. Não há uma rua que não se possa encontrar um ou
mais “terrenos vazios”( ou casas vazias). Murado. Cercado. Aberto. Mas vazios. Esperando alguém que
lhe pague o valor desejado pelo proprietário ou uma adversidade econômica para vendido ou alguém da
família casar-se ou morrer para ser vendido ou partilhado.
Isso é um mal que atinge todas as cidades brasileiras, que não pode ser atribuído à incompetência de
um governo particular. A história econômica brasileira aponta como a sociedade brasileira valorizou a
posse de terras e imóveis (e de homens até 1888.) como símbolo de poder e prestígio, como estratégia
de valorização das rendas e do capital conquistadas às duras penas ou nas sortes da vida.
Tal comportamento social orientado pelo desejo de distinção social foi chamado de “arcaísmo como
projeto” pelos historiadores João Fragoso e Manolo Florentino ao analisarem as elites econômicas
fluminenses do início do século XIX, que investiam seu excedente de capital na reprodução de uma
hierarquia social que os afastava do mundo moderno da época(terras, imóveis e homens), cujo grande
paradigma era a Inglaterra. Pobres e ricos sempre imaginaram, continuam imaginando, que a melhor
estratégia de sobrevivência para uma vida remediada é comprar de moradias e terras.
A diferença que os pobres e camadas populares disputavam(disputam) as áreas das cidades
abandonadas pelo mercado imobiliário, pelo Poder Público e desvalorizadas pelo imaginário urbano. O
que não significa que muito deles não deixassem de especular sobre a própria miséria em volta
(barracos de aluguel, cortiços de aluguel, terrenos à prestações). No clássico O Cortiço(1890) de Aluísio
Azevedo, a experiência urbana da habitação precária tem foi eternizada e denunciada, mostrando as
contradições sociais e políticas da cidade Rio Janeiro no final do século XIX. Enquanto os ricos e as
classes médias buscavam(buscam) as áreas em franca ou futura valorização imobiliário, lugares de
garantido retorno econômico e político do seu capital investido e que demarcavam(demarcam) suas
distinções sociais.
Assim, as cidades brasileiras antes serem lugar para viver ou morar constituem-se numa máquina de
valorização e reprodução de diversos capitais (industrial, financeiro, comercial, privado, etc.) em sua
totalidade e nos seus pedaços. Não há um pedaço dela que não tenha um dono, formal e informal. Sua
paisagem expressa os conflitos e tensões dos distintos usos e apropriações que esses diferentes donos
buscam fazer desses pedaços. Dono para viver e morar. Dono para valorizar. Dono para alugar.
A lógica da valorização e ganho estruturou as cidades brasileiras distribuindo os grupos sociais, de
maneira geral, pela sua capacidade de pagar acesso à terra urbana(terra nua) e ao solo urbano(terra
incorporados infra estrutura urbana e equipamentos e serviços públicas). Que poderia pagar melhores
acesso a vida urbana e habitações dignas, que não pode pagar piores acesso à vida urbana e
habitantes mais precárias e lugares longínquos e impróprios do espaço urbanos.
A história urbana, também, indica que as cidades brasileiras foram deixadas ao bel prazer das forças de
mercado (liberalismo urbano) num quadro em que as políticas urbanas foram orientadas pelo
centralismo tecnocrático e os interesses modernizantes das elites e desenvolvimentistas dos Governos
Brasileiros e a participação popular nos seus destinos restringida, tutelada e, constantemente, negada.
Essa realidade urbana nos últimos anos vem sendo questionado por movimentos sociais e entidades
profissionais pela Reforma Urbana a partir de vitórias na Constituição de 1988, com a criação
instrumentos de participação, Estatuto da Cidade, a criação do Ministério da Cidade e as Conferências
municipais, estaduais e nacional da Cidades.
Assim, o rentismo urbano é um “grande gargalo” ( ou oportunidade) da economia brasileira. Ele impõe
prejuízos políticos e econômicos aos grupos sociais, as famílias e as empresas, assim como ao
planejamento das cidades. Dificulta a localização de novos empreendimentos imobiliários, com a
escalada dos preços dos alugueis e terrenos. Expulsa os pobres e as camadas populares, consolidando
a segregação sócio-espacial, para as franjas da cidade, visto que os próprios governos municipais e
estaduais encontram dificuldades políticas para construírem uma política fundiária e efetivarem as
normativas dos seus planos diretores que regulem o uso e ocupação do solo, contendo o espiral da
especulação imobiliária.
O simples anuncio pelo governo municipal da construção de posto de saúde e condomínio popular
alvoroça os donos de terras elevam seu preços, o mesmo acontece quando são aventa-se a chegada de
grandes empresas. Todos agentes econômicos e cidadãos imaginam uma estratégia como maximizar
vantagens e ganhos com tais investimentos públicos e privados anunciados. Tentando-se inverter esse
quadro de instabilidade e constrangimento as ações dos governos municipais sobre as cidades o
Governo Federal promove conferências da cidades e conselhos de cidades orientados pelo Estatuto da
Cidade.
No entanto, as cidades e metrópoles seguem reproduzindo um modelo de crescimento urbano, o
espraiamento urbano, em que afasta a cidade dos debates da qualidade vida e a aproxima dos
interesses do rentismo urbano e da especulação imobiliária. Ao invés de intensificar apropriação dos
pedaços das cidades já dotados de infraestrutura urbana e serviços e equipamentos públicos (como as
regiões centrais), priorizam-se os loteamentos dispersos que futuramente, mesmo com o aumento da
arrecadação do IPTU, outros impostos e os efeitos econômicos da construção civil, significarão mais
despesas para herário público, orientadas para os pedaços mais valorizados das cidades, e mais
impactos negativos para o espaço urbano, afetando os grupos sociais mais pobres.
Na realidade, estimula-se, com a anuência do Poder Público e a despeito da legislação urbanística e
edilícia em vigor, o espraiamento do espaço urbano reproduzindo-se “os vazios urbanos”( moradias
vazias) pelas cidades brasileiras. A mancha urbana cresce com um pano carcomido (a cidade queijo
suíço) por traças não para sustentar a qualidade de vida de seus cidadãos, solucionar a questão da
moradia ou estimular o desenvolvimento urbano, mas para valorizar os capitais excedentes locais-
regionais e internacionais(capital financeiro).
Tudo isso, infelizmente, na contramão das discussões urbanas realizadas por movimentos sociais e das
orientações políticas do Ministério da Cidade que sugerem aos governos urbanos que promovam e
orientem o crescimento urbano mais “compacto”, tendo como pressuposto a questão urbana brasileira e
o atenuamento dos impactos sociais, econômicos, fiscais, financeiros e ambientais negativos. Os gritos
urbanos negligenciados, ridicularizados e minimizados , pela mídia nacional e governos, denunciam e
resistem a um “projeto de cidade”, que ser quer legítimo e único, cujo logica é a cidade máquina de
valorização do dinheiro.
Tudo que entrava essa máquina, movida pela “utopia” de homogeneização, padronização e
uniformização das cidades, deve ser desmanchado, desmontado, demolido, removido, deslocado,
desregulamentado, suspendido e vigiado. Deseja-se que o estado de direito, como se evidência nas
cidades brasileiras mais impactadas negativamente pelos mega-eventos (Copa da Mundo 2014, Jogos
Olímpicos 2016, etc.), seja “o estado do dinheiro”, o que tem sido posto em questão cotidianamente pela
luta e a articulação políticas dos movimentos sociais e organizações políticas de esquerda, com derrotas
e vitórias.