PARA ALÉM DA OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO:
Notas sobre o discurso da “Pacificação” e seus críticos.
Marcos Barreira*
O processo de “pacificação” das favelas cariocas, iniciado em 2008 e reforçado pouco depois com a vitória da candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar dois grandes eventos internacionais, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, tornou-se um consenso que unifica a política, as empresas de mídia, a Universidade, setores privados, produtores culturais e, é claro, a maioria dos moradores da cidade. Para implantá-lo, o governo do estado do Rio de Janeiro tem à sua disposição não apenas o aparato policial-militar das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e recursos oriundos de diversas fontes, mas conta ainda com o apoio decisivo dos formuladores de intervenções públicas, especialmente as de caráter “social”, que se desenvolvem a partir de iniciativas como o programa UPP Social (coordenado pelo centro de pesquisas e planejamento da Prefeitura) e novos cursos voltados para as demandas do mercado de segurança. Através da repercussão midiática, as UPPs tornam-se, para o Rio, símbolos de um novo momento repleto de possibilidades, e o Rio, um símbolo para o País. No plano cultural, um exemplo inequívoco dessa articulação é o filme 5x Pacificação, de 2012, realizado por jovens cineastas moradores de favelas, que tenta mostrar as UPPs a partir do ponto de vista de “quem vive o dia a dia das comunidades cariocas”. O objetivo, diz um dos diretores, é “causar uma reflexão para que todo mundo siga junto com a secretaria de segurança”.[1] Toda essa mobilização é parte de um programa de recriação da imagem da cidade que vai muito além da “retomada de territórios” e envolve grandes investimentos e processos de reestruturação urbana em larga escala (repletos de leis de exceção) e que encontram sua justificativa quase sem réplica nos “megaeventos”, que funcionam como indutores da acumulação privada.
Do amálgama de intervenções estatais, negócios lucrativos e formas de representação midiática e cultural “dirigidas”, resulta o desaparecimento quase total da opinião pública independente.[2] As implicações dessa nova realidade sobre os saberes especializados e o que restou da reflexão propiciada pela forma estética são evidentes. Por isso, entre aqueles que abordam o processo de “pacificação” com maior distanciamento, aparecem alguns posicionamentos dissonantes e até mesmo conflitos abertos contra o “pastiche midiático”, mas em nenhum momento lhes é permitido deixar de elogiar as ocupações militares. A imprensa também se encarrega de colocar dúvidas sobre aspectos parciais da “pacificação”, de modo a não deixar dúvidas sobre o conjunto – e sobre a sua própria atuação na cobertura dos fatos. Esse posicionamento dúbio criou um padrão interpretativo que oscila entre a exaltação da ocupação militar e a denúncia altaneira dos “desvios” ou imperfeições do policiamento permanente nas favelas. Um argumento comum entre os defensores mais discretos das práticas em curso é o de que o Estado deve criar – ou fortalecer – uma esfera pública capaz de instaurar o diálogo entre os diferentes “atores sociais” envolvidos nas ocupações. Para alcançar tal meta, seria necessário investir na criação de uma polícia “comunitária” ou “de aproximação” que garantisse o exercício pleno da cidadania aos moradores das favelas ocupadas. O alvo das críticas é quase sempre o esvaziamento das iniciativas locais, obstruídas, de uma forma ou de outra, pela “policialização” dos conflitos sociais. Fala-se, por exemplo, de como “a estreita ligação entre UPP Social e a unidade policial, além das fortes relações com o setor empresarial, desenha um modelo novo de definição do social” (FLEURY, 2012: 7). Na mesma linha de argumentação, o sociólogo Luiz Werneck Vianna fala de uma “política social sem política” evidenciando, no modelo de ocupação militar, a ausência de organizações livres da sociedade civil.[3] Em outras abordagens, fica a impressão de que a ambiguidade em questão seria menos um produto das interpretações do que um dado estrutural do próprio caso analisado. Sendo assim, a imprecisão dos objetivos teria produzido uma política de segurança que não se definiu pela “guerra” ao crime ou pela mudança da cultura policial. Em todo caso, “ao menos como projeto as UPPs são, de fato, uma novidade muito positiva”, diz Luiz Antonio Machado da Silva, acrescentando que “seu sucesso depende de um acompanhamento menos eufórico, capaz de indicar os riscos de seu desvirtuamento e gerar expectativas menos desmesuradas como as atuais, em relação tanto a prazos e metas de ‘pacificação’ quanto ao alcance do programa” (SILVA, 2012a). Apesar da crítica ao tom eufórico das coberturas jornalísticas, cabe ressaltar que a mídia tem adotado uma postura idêntica à defendida pelo professor, guardadas as diferenças de conteúdo, quando se move alternadamente entre a ideologia da “libertação”, representada pelas bandeiras hasteadas sobre territórios conquistados, e os discursos mais pragmáticos, que cobram das autoridades apenas a redução imediata dos conflitos ou a limitação da ação das quadrilhas nas favelas. Também não se pode negligenciar o fato de que a maior parte das denúncias sobre a “migração de crime” após a ocupação das favelas, bem como sobre a atuação de grupos milicianos nas periferias da cidade, têm surgido antes na imprensa do que no debate universitário e têm até pautado muitas pesquisas que, no final das contas, por modéstia metodológica, revelam-se sempre inconclusivas. De qualquer forma, os dois casos demonstram que as intervenções militarizadas podem ser contestadas em função de algo que se crê ser um efeito secundário, mas, em última análise, permanecem legitimadas graças aos resultados imediatos até aqui obtidos, ainda que as finalidades da “pacificação” permaneçam pouco claras.
Uma atitude inversa, que se coloca em inequívoca oposição à militarização, pode ser observada nos comentários mais diretamente identificados com posições de “esquerda”, que tendem a enxergar as UPPs como instrumentos de criminalização da pobreza e ampliação das formas de controle social. Longe de representar um “desvio” ou um efeito colateral das políticas oficiais, a “policialização” da vida cotidiana e dos conflitos no interior das áreas ocupadas seria a própria finalidade das operações estatais. Na sequência de um longo histórico de controle social penal das camadas populares, as UPPs são denunciadas como dispositivos (no sentido foucauldiano dos mecanismos de operação material do poder) de ocupação militar e como laboratórios de novas técnicas de administração repressiva das populações marginalizadas. Ainda nessa perspectiva, as UPPs se aproximariam mais de uma forma “biopolítica” de gestão global da vida dos indivíduos, como se pode verificar nas inúmeras proibições, regulamentações e sistemas de vigilância impostos aos moradores, do que das experiências do chamado “policiamento comunitário”- amiúde evocado pelos meios de comunicação para legitimar as ocupações. Para Vera Malaguti,
o fato das UPPs estarem restritas ao espaço de favelas, e de algumas favelas, já seria um indício luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a ocupação militar e verticalizada das áreas de pobreza que se localizam em regiões estratégicas aos eventos esportivos do capitalismo vídeo-financeiro (…) Com isso queremos frisar que as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregações socioespaciais no Rio de Janeiro [grifo meu] (MALAGUTI, 2012).
Com argumentação semelhante, Joana Moncau define as UPPs como “mecanismos de controle e condicionamento das classes populares, cuja característica principal é a ocupação militar do território. Nesse sentido, não é nenhuma espécie de polícia comunitária, como alguns afirmam, mas uma clara ocupação militar” (MONCAU, 2012). Aqui, enfim, caberia retomar o problema do esvaziamento das associações coletivas locais, porém não mais como um fenômeno secundário e quase acidental, mas como um projeto deliberado de monopolização das iniciativas nos territórios ocupados a fim de garantir a “governamentalidade” dos pobres e defender interesses privados sob a fachada da libertação dos territórios. Ainda sobre a relação entre ocupação militar e interesses econômicos, outra abordagem chega ao ponto de afirmar que “os espaços gigantescos de moradia dos pobres se tornaram grandes jazidas de acumulação para o capitalismo cognitivo” (COCCO, 2012), o que teria transformado as favelas em atrativos espaços de consumo disputados por empresas privadas e grupos mafiosos (milícias). Com isso, a militarização do espaço urbano, mais identificada com a ocupação das Forças Armadas do que com a das UPPs – embora uma tenha aberto o caminho para a outra – seria um elemento necessário para garantir essa “nova fronteira” da acumulação.
Quando os agentes do Estado ocupam indefinidamente uma favela sem que isto melhore o acesso aos direitos dos moradores, diz Michel Misse, a territorialização que caracterizava a atuação do tráfico de drogas é prolongada, seja sob influência policial ou das Forças Armadas. Sendo assim, as UPPs dão continuidade à lógica de operar por territórios ao invés de romper a territorialidade e integrar os diferentes espaços da cidade. “O desafio da permanência [das UPPs] agora não é, como se supõe, o de ‘levar políticas públicas’ para os territórios, mas, por paradoxal que pareça, desterritorializá-los, isto é, integrá-los como bairros normalizados à cidade” (MISSE, 2012). Por trás desta lógica está a idéia autoritária de que “a comunidade pertence ao Estado”, como mostra Marcelo Lopes de Souza, que também desenvolve sua análise a partir do olhar sobre o território: através da “reconquista” – expressão que evoca “fervor patriótico e fanatismo religioso” –, a pacificação instaura um controle social cada vez maior sobre o espaço urbano. Já não estamos falando apenas dos territórios da pobreza. A utilização das Forças Armadas para finalidades de controle, dando suporte às UPPs nos grandes complexos de favelas, resulta na “militarização da questão urbana” e na domesticação dos segmentos mais mobilizados da sociedade (SOUZA, 2012). Também aqui, diga-se de passagem, vemos reproduzida a diferença entre a perspectiva sociológica, que capta os descaminhos de um processo considerado, em seus aspectos gerais, como positivo ou necessário, e a denúncia do caráter essencialmente autoritário da militarização.
Outras análises, igualmente focadas na crítica da ideologia da “pacificação”, têm chamado a atenção para o caráter negociado das intervenções policiais. O conjunto de acordos oficiosos entre os executores da política de segurança do Estado e as redes do tráfico estaria reorganizando a estrutura do crime. Mais: o poder policial-militar exercido através do policiamento permanente teria se constituído como uma forma embrionária de “milícia institucionalizada”, pois muitos policiais, conforme diversas denúncias noticiadas pela imprensa, têm se beneficiado de sua posição para criar fontes de renda ilegais ligadas ao varejo de drogas ou aos serviços “alternativos” que proliferam nos espaços da pobreza.[4]
Além dos discursos produzidos pela mídia e pelas pesquisas universitárias, outras vozes também se fazem ouvir, manifestando perspectivas diferentes sobre o processo de “pacificação”. Na fala das lideranças comunitárias, por exemplo, surgem diferenças importantes em relação ao discurso dos “especialistas”. Em primeiro lugar, a necessidade, por parte de tais lideranças, de administrar conflitos e de representar a comunidade não permite que as denúncias de violências e arbitrariedades sejam colocadas em segundo plano. É grande o sentimento, entre os moradores das favelas ocupadas, de que o policiamento permanente não muda imediatamente a cultura e as práticas policiais. Por outro lado, a diminuição dos conflitos e incursões policiais violentas se reflete, na opinião majoritária dos moradores, em aprovação, e gera expectativas favoráveis nos locais onde o programa não foi implantado.[5] Assim, quanto ao posicionamento em relação às UPPs, a maioria das lideranças adota um discurso de acomodação, que tenta colaborar e, ao mesmo tempo, cobrar das autoridades as prometidas políticas sociais e econômicas de “integração”. A necessidade de políticas públicas capazes de garantir a contrapartida social das ocupações surge como a reivindicação principal: “nós queremos o poder público presente, não só o braço armado do poder público”, diz um líder comunitário do Morro da Mineira.[6] Outro fator determinante para a incorporação parcial do discurso “oficial” pelas lideranças é a cooptação política, que ocorre não apenas por causa de interesses individuais, mas porque as reivindicações populares tendem a ganhar mais legitimidade junto à “opinião pública” quando não confrontam a ideologia oficial da “pacificação”. Mesmo assim, existem aqueles que não enxergam muitas diferenças entre as UPPs e outras experiências de controle policial. É o caso de Rumba Gabriel do Movimento Popular de Favela, para quem a UPP é apenas um novo rótulo, exigido pelo momento político atual, para mascarar velhas práticas autoritárias.[7] Também aparece na fala de algumas lideranças que adotam uma posição crítica às UPPs a tese de que o programa seria uma “fachada de segurança” para dar uma resposta imediata aos investidores do projeto olímpico, o que não se coaduna com as críticas que descrevem um reforço do controle social sobre a pobreza. Além disso, é importante compreender o conjunto das favelas ocupadas como espaços heterogêneos, nos quais convivem diferentes camadas sociais, ou diferenças entra as “partes altas”, menos integradas à cidade, e as “partes baixas”, entre o comércio formal e o informal. Portanto, não se pode esperar uma reação uniforme da população local, tendo em vista que, junto com a ocupação policial-militar, ocorrem também processos de regulamentação dos serviços e atividades, além da proibição de eventos culturais responsáveis pela geração de muitos empregos e da ampliação do fluxo de pessoas que vêm de fora das comunidades.
Entre os agentes do Estado, nova dualidade: nas falas dos comandantes da PM encontramos apenas um resumo da versão doutrinária do projeto, sem que elas difiram das formulações da secretaria de segurança. Os discursos oficiais vão sendo elaborados de acordo com as demandas mais urgentes. As UPPs, que eram apenas um experimento localizado, ganharam corpo e apoio político e midiático quando começou a crescer a atenção internacional sobre a cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, o programa tornou-se instrumento decisivo do governo do estado na disputa política no Rio de Janeiro. A “pacificação” da cidade foi enaltecida pela cobertura midiática durante a ocupação das favelas do Complexo do Alemão e da Penha, no final de 2010 (embora o episódio tenha sido protagonizado pelas Forças Armadas, sem respaldo legal, em uma operação imprevista, mas que resultava das intervenções da Polícia Militar em outras favelas), e as UPPs foram apresentadas como “territórios da paz”, tornando-se uma marca de exportação para outras cidades. Porém, o que os políticos não dizem e a maioria dos especialistas finge não perceber pode ser constatado a partir do ponto de vista da corporação policial, ainda que se trate apenas de uma formulação tosca. Em contraste com as declarações oficiais, prevalece entre os policiais a idéia de que as UPPs visam apenas à segurança da Copa e das Olimpíadas, além de se configurar como um “programa eleitoreiro” para tranqüilizar a classe média (CANO, 2012: 8-9). Igualmente relevante é o surgimento de manifestações de clara hostilidade ao programa por parte dos policiais, como a clivagem no interior dos batalhões entre os PMs mais antigos e os recrutas formados para atuar nas UPPs, que não são reconhecidos pelos primeiros como “verdadeiros policiais”. Além disso, uma pesquisa com soldados lotados nas “unidades pacificadoras” mostra que 70% deles preferiam realizar outro tipo de policiamento (CANO, 2012: 8-9). É flagrante o contraste entre as idéias norteadoras do programa e a sua implantação. No entanto, pronunciamentos mais recentes do secretário de segurança, José Mariano Beltrame, indicam uma espécie de inflexão realista: “não pretendemos usar o projeto em todas as favelas, e isso também não é o remédio definitivo para os nossos problemas”, disse o secretário em um momento de crise gerado a partir das evidências de que os conflitos entre traficantes prosseguiam na periferia da cidade.[8] Isso significa que, contrariando muitas expectativas, o policiamento permanente não deve se converter em uma política de segurança para o conjunto da cidade, o que ocorre menos por causa da carência de recursos do que pela própria natureza do programa. O modelo de policiamento que vem sendo adotado nas ocupações exige cinco vezes mais PMs por morador do que o patrulhamento convencional e, em muitos casos, conta ainda com instalações provisórias e condições de trabalho bastante precárias. Mas isso não explica tudo. O fato é que as UPPs foram concebidas a partir de uma perspectiva que vê as favelas ocupadas como espaços de ilegalidade incrustados na cidade. As UPPs não podem se generalizar porque só são possíveis onde existe um nítido contraste entre a favela e a cidade formal, o que elucida a escolha das áreas centrais e dos bairros das camadas mais abastadas (além das principais vias de acesso e circulação da cidade) em detrimento das áreas periféricas, que contam com os maiores índices de violência.
Esse quadro nos coloca diante de uma dificuldade que é anterior à questão da estratégia de segurança adotada pelo Estado e que as coberturas jornalísticas costumam se esforçar para nos fazer esquecer: as ocupações das favelas não foram precedidas por nenhuma reforma das instituições policiais. Helio Luz, ex-chefe da Polícia do Rio de Janeiro entre 1995 e 1997, diz que o fato de colocarem recrutas para montar as UPPs revela o descontrole e a corrupção nas polícias.[9] Por sua vez, Luiz Eduardo Soares, secretário de segurança pública entre 1999 e 2000, que também considera as UPPs uma continuação dos “mutirões pela paz” e do GPAE, afirma que as virtudes do programa “não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas” (SOARES, 2012). Mas a UPP não avança nesse sentido: o treinamento diferenciado não diminuiu a truculência e o autoritarismo, mantendo a desconfiança mútua entre moradores e policiais. Se as operações com altos índices de mortalidade diminuíram, a convivência forçada com um aparato repressivo fortemente armado e que exerce um controle permanente sobre a vida cotidiana das favelas produziu novos atritos. Desde 2009, o Estado ampliou o número de policiais, mas a formação “diferenciada” tem esbarrado nos problemas da urgência e da falta de recursos, o que resulta na eliminação de critérios de seleção e na redução do tempo de formação dos recrutas. Em 2000, os policiais do GPAE receberam treinamento especial, incluindo instruções sobre legislação, direitos humanos e abordagem de pessoas. Mesmo assim, cerca de 70% dos policiais empregados no grupamento foram transferidos por desvios de conduta.
Embora existam semelhanças entre o GPAE e as ocupações atuais, não faltam diferenças, especialmente no que diz respeito à amplitude das operações e ao apoio político e midiático, ambos indissociáveis do projeto olímpico. Existe também uma significativa diferença de concepção. Ao contrário das UPPs, o programa anterior não previa a manutenção de grandes contingentes policiais nos locais ocupados. Essa diferença reflete uma preocupação maior com a redução dos índices de criminalidade violenta do que com o controle de territórios estratégicos. De qualquer forma, o programa não foi adiante por falta de apoio político e em função das denúncias envolvendo o problema para o qual as UPPs também não apresentam solução: a corrupção das polícias.
Ao descrever esse conjunto de análises, opiniões e posicionamentos a respeito da “pacificação”, pretendi colocar em evidência as implicações deste processo e o amplo conjunto de questões que ele suscita. Em primeiro lugar, interessa o modo como a problemática da segurança pública se articula com aspectos centrais da dinâmica da cidade. Em um texto anterior, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, persegui as pistas dessa articulação.[10] Nele, argumentei que a lógica da “pacificação” possui três dimensões, todas relacionadas entre si, de modo que nenhuma delas pode ser plenamente compreendida se isolada das demais. Em primeiro lugar, trata-se de uma imagem de segurança a qual a cidade precisa estar associada: mesmo tendo nascido como um experimento relativamente autônomo, o programa das UPPs só ganhou força quando começou a fazer parte de um projeto mais abrangente de reestruturação urbana. Esse projeto reproduz uma longa tradição de grandes reformas, inaugurada pela administração de Pereira Passos, no início do século XX, que tem sua razão de ser não na melhoria das condições de vida da população, mas na necessidade de modificar a imagem da cidade. Como já foi dito, coube às novas unidades de policiamento permanente diminuir o sentimento de insegurança da população através da ocupação de pontos estratégicos da cidade. Também a imagem do Estado e a legitimidade de suas intervenções estavam em questão, tendo em vista os números alarmantes de supostos confrontos letais envolvendo policiais. Com a sinalização de uma mudança das formas de enfrentamento da criminalidade que logrou, a despeito da manutenção de altos índices de violência, a construção de um consenso a respeito dos seus êxitos, a cidade do Rio pôde voltar a ser um cenário atrativo para investimentos de grande porte. Nesse sentido, o “ufanismo televisivo” é parte integrante e indispensável da lógica da pacificação. É nesse contexto que os chamados “megaeventos” esportivos surgem como os grandes catalisadores, que devem atrair parceiros privados e mobilizar grande parte da população local em torno da “renovação” da cidade. Para isso, os organizadores dos eventos, que não deixaram de inspecionar as primeiras UPPs antes que a sede dos jogos fosse escolhida, contam com o favorecimento do poder público e com uma série de medidas de exceção capazes de, em pouco tempo, produzir a adequação da cidade ao projeto olímpico. É aqui que entra o segundo aspecto da “pacificação”: as UPPs participam ativamente na consolidação de um novo modelo de cidade empreendedora. Isso acontece em função da escolha das áreas privilegiadas, que devem se tornar mais seguras para o conjunto de investimentos e na produção de novas segregações socioespaciais pois, juntamente com as UPPs – e, em parte, através delas –, a política de remoções tem ganhado novo fôlego. Por sua vez, a valorização imobiliária decorrente não só das ocupações, mas do conjunto de transformações urbanas atuais, não deve ser considerada um simples epifenômeno. Através de inúmeras declarações oficiais, podemos constatar que as áreas a serem ocupadas são escolhidas também em virtude das possibilidades de valorização patrimonial. Por fim, as UPPs têm servido para garantir, nas favelas ocupadas, a integração de serviços e atividades informais a todo um conjunto de novas articulações pela via econômica, cujos exemplos mais expressivos são um banco popular na Cidade de Deus e a privatização dos serviços na zona portuária sob a vigilância da UPP da Providência. Esse último dado nos coloca diante de mais um aspecto da “pacificação”, que é o fortalecimento do controle social já mencionado. Cabe apenas ressaltar que, ao contrário da visão ingênua de alguns críticos, não estamos diante de um programa passageiro, e sim de uma forma adensada de controle que modifica a dinâmica da cidade e altera também a relação entre o Estado e os segmentos mais pobres da população. Por outro lado, a cidade do Rio de Janeiro assistiu, nos últimos dez anos, à ascensão de novas formas de regulação social armada, que tem se intensificado – e não por acaso – nas áreas negligenciadas pelo programa de “pacificação”. Em meio a esse processo contraditório, as periferias que atraem a migração do tráfico, e para as quais já se disse abertamente que as UPPs não são uma solução, continuam a ser as principais vítimas da política extra-oficial de execuções e desaparecimentos.
As favelas sempre constituíram relações de cooperação em seu espaço interno, a partir das quais surgiu um discurso um tanto idealizado sobre as “comunidades”. No plano da economia urbana, elas são parte de um “circuito inferior” que se relaciona com o conjunto das atividades presentes na cidade (SANTOS, 2004). Porém, no plano social, são abundantes as medidas de urgência e de sobrevivência que, mesmo sem qualquer perspectiva de mudança social, não assumem a forma de relações mercantis. A integração das favelas ocupadas ocorre de forma muito parcial ou seletiva. A via da “formalização” das atividades não tem contrapartida em termos de projetos sociais ou de organização coletiva. De um lado, ela agrava as segregações através da elevação dos custos gerais da reprodução das moradias e, de outro, estimula, nos espaços marginalizados, as mesmas relações presentes no restante da cidade. Os moradores das chamadas “comunidades” se parecem cada vez mais com indivíduos atomizados que podem apenas trocar serviços entre si. As poucas formas de organização social existentes ficam comprimidas entre as pressões econômicas e um sistema de vigilância permanente. Por isso, não é acidental que as UPPs obstruam as iniciativas coletivas. Se o auge dos movimentos comunitários na década de 1980 estava associado ao reconhecimento dos direitos da população pobre, a conjuntura inaugurada na década seguinte, que pode ser caracterizada como uma viragem política de caráter “neoliberal”, foi dominada pelas idéias fixas do mercado e da ordem urbana. Assim, a idéia de integração, antes associada às demandas coletivas que só podiam ser atendidas através de políticas universalistas, foi sendo ressignificada até se tornar uma espécie de privatização da vida cotidiana por meio do consumo individual.[11]
Duas questões surgem a partir desse quadro. Além da necessidade de compreender a transformação da política de segurança em um momento decisivo da “renovação” da imagem da cidade, surge o desafio de articular a problemática da violência com o desenvolvimento da crise urbana.
No que diz respeito à relação entre violência e reestruturação urbana, podemos dizer, muito resumidamente, que o problema principal é o tratamento monográfico ou unilateral dispensado a temas que, pela sua própria natureza e dinâmica, só podem ser compreendidos como partes de uma totalidade concreta. Para um determinado “campo” de investigação teórica que se debruça sobre a problemática da segurança, os elementos negligenciados são a cidade e o urbano. Isso ocorre, por exemplo, quando algumas análises apontam que a limitação, por assim dizer, espacial, do programa das UPPs, decorre exclusivamente da falta de recursos para a expansão e manutenção de novas unidades. O que desaparece nesse tipo de comentário é a produção de segregações, bem como a reconfiguração territorial do crime – quer se trate dos grupos de traficantes que abandonam as áreas mais “nobres” da cidade, quer das milícias, que ocupam as áreas “descuidadas” pelo Estado. Em outros momentos, a dimensão espacial volta à cena, mas adquire um sentido mais retórico que analítico. Assim, podemos ler que “as UPPs são uma proposta de política de segurança pública específica para áreas da cidade que podem ser reunidas sob o nome de territórios da pobreza”.[12] Se o que está em questão é a ocupação dos “territórios da pobreza”, como foi afirmado, então convém perguntar: por que motivo as regiões mais pobres da cidade (sem falar nos municípios limítrofes, ainda mais pobres e mais violentos) são, precisamente, os locais que permanecem fora do alcance direto da pacificação? É que o problema parece estar colocado de modo invertido. Não se trata de ocupar os “territórios da pobreza”, mas de controlar a massa de pessoas pobres que permanece em aglomerados de pobreza no interior ou em contato com os territórios nos quais a riqueza circula. Em todo caso, a questão de saber por que, afinal de contas, a lógica da “pacificação” privilegia as áreas “nobres” é respondida pelo mesmo autor, agora não do ângulo do especialista, mas da razão cínica:
considero possível que o simples deslocamento das atividades criminais para regiões mais recônditas da cidade, associado à discrição no uso de armas pelos criminosos que permanecem atuando nas áreas nobres, venha a reduzir o sentimento generalizado de medo e insegurança… (SILVA, 2012b: 3).
Outro campo de investigação que nos interessa mais diretamente é o das pesquisas urbanas. Também aqui se verifica o mesmo desencontro. Mesmo alguns pesquisadores que fazem parte do debate sobre o “novo modelo de cidade” em gestação, como Raquel Rolnik ― relatora da ONU para o direito à moradia adequada ―, enxergam as UPPs somente como “condicionalidades”, sem relação direta com os “megaeventos”.[13] Essa questão também foi alvo da reflexão de um Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas que reúne, entre outros, integrantes da Central de Movimentos Populares, da Justiça Global, do Observatório das Metrópoles e do Fórum Popular de Orçamento do Rio de Janeiro. O Comitê produziu o dossiê “Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro”, com o qual compartilho uma série de pontos de vista e que tem, desde já, o mérito de colocar em foco a relação entre as UPPs e a lógica do empreendedorismo urbano. Para o coletivo de autores,
o que fica claro no caso do Rio de Janeiro é que o projeto de atração de investimentos tão propagandeado pelo poder público municipal e estadual com a realização da Copa do Mundo de futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 tem como um componente importante a expulsão dos pobres das áreas valorizadas ou que serão contempladas com investimentos públicos. Outra faceta dessa política é a criação das UPPs (…) tendo em vista que não é possível deslocar todos os pobres das áreas ‘nobres’ da cidade [grifo meu]. (DOSSIÊ, 2012: 8).
Contudo, ao analisar mais de perto o tema da segurança pública, o dossiê afirma, em patente contradição com o próprio diagnóstico acima citado, que as UPPs, definidas como um programa “inspirado no conceito de policiamento comunitário, que tem como estratégia a busca de uma parceria entre a população e as instituições de segurança”, “trazem uma série de benefícios para os moradores”, incluindo a “inserção no mercado formal” e a “redução dos homicídios”, o que, na opinião dos autores, seria contrabalançado apenas pela crescente especulação imobiliária nas favelas ocupadas, provocando a expulsão dos mais pobres (DOSSIÊ, 2012: 51). Ao não enfatizar as diferenciações econômicas no interior das comunidades ocupadas, os autores são levados, em outra contradição, a considerar a mercantilização das favelas como um “benefício para os moradores”. Ao mesmo tempo em que o Comitê denuncia a substituição de uma política de segurança eficaz pela produção de uma “imagem de segurança” voltada para a atração de investidores, o seu documento considera que o principal instrumento dessa representação ideológica de uma “cidade segura” para o capital, a UPP, é uma “importante conquista” em relação às políticas anteriores, e termina as considerações sobre a política de segurança cobrando a extensão do programa para o conjunto da cidade, pois “há outras centenas de comunidades que ainda não receberam as UPPs” (DOSSIÊ, 2012: 52).[14] Além disso, o documento, que caracteriza vagamente as UPPs como “inspiradas” no policiamento comunitário ― e, assim, coloca-se em uma posição ainda mais frágil que a das abordagens sociológicas descritas acima ―, também as considera como parte de um programa meramente instrumental a serviço dos interesses envolvidos na organização dos grandes eventos: “é claro que esse investimento em segurança faz parte de um projeto maior de reterritorialização urbana e de controle social”, que seriam “elementos chaves dos megaeventos”. (DOSSIÊ, 2012: 51). Aqui seria necessário inverter o argumento para mostrar como é que grandes eventos de porte internacional tornaram-se, especialmente a partir da experiência de Barcelona, no início dos anos 1990, elementos importantes para a concepção de um “projeto maior” de reestruturação urbana orientado pelos princípios da gestão empresarial. Se a lógica da “pacificação” não pode ser explicada a partir de uma hierarquia dedutiva que a converta em simples instrumento de interesses econômicos, o que exige um desvelamento das articulações entre a crise urbana e as intervenções no âmbito da segurança, tampouco cabe atribuir a um “megaevento” a capacidade de produzir, por si só, a reconfiguração da dinâmica territorial da cidade. De qualquer forma, a imagem desenhada pelo dossiê permanece, malgré lui, essencialmente correta para caracterizar um modelo de cidade segregada que está sendo produzida aqui e agora:
Depois da Copa e das Olimpíadas, corre-se o risco de se acordar numa cidade onde os que consomem, vivem e lucram no mercado formal das partes mais nobres da cidade podem ter acesso quase instantâneo à segurança, enquanto as camadas sociais menos favorecidas vivem sob a vigilância de um regime militar altamente armado e treinado para defender os interesses mercantis” (DOSSIÊ, 2012: 54).
Quanto à segunda questão, cabe, antes de tudo, reconhecer que se trata de um tema difícil, quase não abordado por aqueles que se dedicam à questão urbana e que ultrapassa os limites destas notas. É preciso considerar que a expansão do modelo do tráfico de drogas baseado no controle territorial armado não é compreensível sem referência ao processo de esvaziamento econômico da cidade a partir da segunda metade da década de 1970.[15] No caso do Rio de Janeiro, também não se pode esquecer que essa situação de urbanização sem crescimento econômico resultou no modelo atual de ocupação das periferias e na favelização. O que se viu a partir de então foi não apenas o domínio territorial de partes da cidade pelas facções de traficantes armados mas, igualmente, a proliferação dos famigerados grupos de extermínio, que constituíam uma espantosa “solução” privada encontrada por comerciantes e políticos locais para suprir a ausência do aparato policial nas regiões carentes da cidade. Ao mesmo tempo, a corrupção policial se tornava decisiva no fortalecimento das redes do tráfico de drogas e armamentos pesados. Nas favelas, os métodos de tortura abolidos pelos rituais punitivos modernos, que incluem esquartejamentos e pessoas queimadas ainda com vida dentro de pneus, foram reproduzidas nos “tribunais” do tráfico, em longas expiações públicas que bem poderiam ilustrar a ostentação dos suplícios descrita por Foucault em seu livro sobre o nascimento da prisão. Esse quadro de barbárie que acompanha todo o período de crescimento da pobreza urbana alimentou o que foi oportunamente classificado como uma “guerra particular” entre traficantes e policiais, sem falar nos conflitos permanentes entre as facções do tráfico. O Rio de Janeiro viu o antigo status de “Cidade Maravilhosa” desaparecer em manchetes de jornais que descreviam a cidade como um cenário de guerra e decadência econômica. Assim, a força das armas impôs relações brutais que, de tão freqüentes, foram naturalizadas: incursões violentas nos morros, práticas sistemáticas de tortura nas delegacias e unidades prisionais e a faccionalização de territórios periféricos.
Nessa atmosfera de decomposição social é que surgem as primeiras tentativas de reversão da crise, o que inclui a presença recorrente das Forças Armadas nas ruas da cidade. Mas essa reversão, idealizada desde o início dos anos 1990 e que culmina na realização do projeto da “Cidade Olímpica”, não ocorreu a partir de uma mudança que revertesse o quadro de pobreza e desigualdade. Ao contrário, ela deixou os mecanismos de exclusão social intactos. O novo urbanismo está atrelado a processos concentradores de riqueza. Ele reduz a gestão pública à criação de contextos favoráveis aos interesses privados e reforça a segurança patrimonial e a vigilância privada contra as estratégias de sobrevivência dos pobres. Com a imagem de segurança produzida pelas UPPs é possível voltar a fazer da cidade um lugar atrativo para investimentos reunidos em poucas mãos, que são capazes de absorver os segmentos mais qualificados da mão-de-obra, mas deixando em segundo plano os serviços básicos e as condições materiais de reprodução da maior parte da população. Esse padrão de investimento sem planejamento, guiado unicamente pelos lucros da especulação sobre o preço dos terrenos, estimulou a política de remoção dos pobres, que retornou com força nos últimos anos. Em função do tipo de investimento recebido, a cidade do Rio tem permanecido alheia até mesmo à redução da pobreza que se verifica no cenário nacional com a ampliação do consumo na base da pirâmide social. Na última década, de fato, ocorreu não só um aumento (em termos absolutos e relativos) da favelização, o que indica um aumento da pobreza, mas a cidade vem se tornando cada vez mais cara e desigual. Não há, portanto, como falar em “novas fronteiras” para a acumulação. Antes, o capitalismo de crédito popular e endividamento deveria ser visto como sintoma dos limites do crescimento impostos por uma crise estrutural que tem se mostrado irreversível. Os cenários da “Cidade Olímpica”, da qual as UPPs são parte essencial, têm devolvido aos “cariocas” a auto-estima, enquanto as periferias se convertem em espaços de atuação dos poderes mafiosos. Aqui, a crise urbana torna-se central para compreender as formas de regulação social armada e a economia de pilhagem. A atuação dos grupos milicianos nas brechas de um poder estatal, cuja capacidade de intervenção global é solapada devido aos altos custos de manutenção do “aparato”, não é uma estratégia consciente de poder, mas um momento dessa crise.[16] A crescente redução da lucratividade do tráfico, que expressa a mesma situação do ângulo de uma economia ilegal, ampliou substancialmente o quadro de crise ao levar as diferentes facções a práticas cada vez mais irracionais. Se em algum momento foi possível ver a “opção pelo tráfico” como fruto da racionalidade econômica, o morticínio verificado nos últimos anos ― especialmente entre os jovens das favelas e periferias ― torna ridículo esse tipo de cálculo supostamente racional, do mesmo modo que as novas drogas baratas introduzidas já no contexto de crise não são capazes de criar um “novo mercado” para o tráfico, podendo, apenas, ampliar o espetáculo “pós-urbano” de desagregação social.
A “Cidade Olímpica” torna-se cada vez mais dual: da mesma forma que a Reforma Passos acabou com a “promiscuidade” entre camadas sociais na antiga área central, dando origem a favelas e ocupações suburbanas irregulares, a reestruturação pela qual a cidade vem passando nas duas últimas décadas (e, com maior ênfase, desde o início das obras de preparação para os eventos esportivos internacionais) ampliou as segregações e as formas violentas de administração da pobreza. Essa estratégia urbana, comum em metrópoles de países periféricos, faz parte de uma “economia básica de distribuição dos espaços, que implica a construção de dois territórios dentro de uma mesma sociedade” (MENEGAT, 2006: 105).[17] A cidade que pretendia repetir o aparente sucesso de Barcelona – que, nesse meio tempo, se tornou mais do que duvidoso – conseguiu apenas reproduzir algumas das lições de Medellín, cidade que inspirou uma série de aspectos do nosso modelo de “pacificação”, desde a concepção geral das ocupações permanentes até alguns detalhes como os teleféricos, parques literários e acanhados projetos sociais idealizados para “disputar” os jovens com as redes do tráfico. Mas a maior lição, que, aparentemente, confirmava uma idéia repetida de forma dogmática pela maioria dos especialistas, é que a redução da pobreza não é uma condição para enfrentar o problema da criminalidade. Em todo caso, o que já acostumamos a chamar de “enfrentamento da violência” não significa uma menor necessidade de regulação armada da sociedade e, muito menos, uma redução substancial da criminalidade. Trata-se apenas de criar um impacto positivo com o qual se espera garantir um “salto nos negócios”. Também aqui Medellín nos oferece um exemplo: a “pacificação”, que varreu os grupos insurgentes das favelas, conseguiu substituir os conflitos e massacres cometidos por paramilitares por assassinatos seletivos de lideranças comunitárias. Com a posterior desmobilização desses grupos, o centro da cidade finalmente se tornou um lugar seguro para os negócios, incluindo o boom imobiliário financiado com o dinheiro das drogas. Enquanto isso, “milícias civis” infiltradas por traficantes e ex-paramilitares se convertiam em grupos legalizados de vigilância privada. Não foram poucos os que viram a articulação entre negócios ilícitos, corrupção política e paz armada como um bom exemplo. Será uma nova lição de Medellín?
Referências bibliográficas
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* Marcos Barreira é geógrafo, mestre e doutor em Psicologia Social/UERJ.
[1] “Luciano Vidigal fala durante exibição no Cantagalo”, disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=5VHFwSv-ltc.
[2] E, desde há muito, se sabe que “todos os especialistas são midiático-estatais, e só dessa forma são reconhecidos como especialistas” (DEBORD, 1988: 31).
[3] “Conferência: Luiz Werneck Vianna – Sociedade, Política e Direito”, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Bh3nbe5i_2w. Acesso em: novembro de 2012.
[4] Para exemplos de interpretação que partem dessas denúncias, ver Alves e Martins (ALVES, 2012; MARTINS, 2012).
[5] Uma pesquisa da FVG realizada em 2009 avaliou a opinião de moradores nas duas primeiras UPPs: “No mínimo 95 de cada 100 entrevistados apoiaram a expansão dessa política para outras comunidades e 90% desejava que a iniciativa continuasse indefinidamente em sua região” (CANO, 2012: 6). Essa aprovação esmagadora deve ser relativizada de duas maneiras. Primeiro, porque ela se refere a duas UPPs que serviram de “modelo”: a do morro Dona Marta e a da Cidade de Deus. Em outros casos, o processo de instalação das UPPs apresenta outras características e enfrenta maiores dificuldades, além de contar com menor apoio local. Em segundo lugar, a aprovação alta não elimina o sentimento negativo em relação aos policiais, que é provocado por diferentes “abusos” cometidos nas favelas ocupadas. Além disso, já se constatou que a presença do policiamento permanente aumenta as denúncias de pequenos crimes nas áreas ocupadas, mas inibe as denúncias quando o alvo é a própria polícia – o que mascara as estatísticas de corrupção e práticas violentas cometidas pelos policiais lotados nas UPPs. Quanto ao temor de que a “pacificação” acabe após os grandes eventos que a cidade vai sediar, ele não se deve somente à perspectiva de interrupção dos já escassos programas sociais, mas ocorre também – e principalmente – por causa da incerteza quanto a uma possível volta dos traficantes armados.
[6] “Favela-bairro ficou pela metade na Mineira”, disponível em: http://www.fazendomedia.com/favela-bairro-ficou-pela-metade-na-mineira/.
[7] Entrevista ao autor realizada em outubro de 2012. Rumba destaca ainda a continuidade entre as UPPs e o GPAE (Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais), criado em 1999 mas logo encerrado. Michel Misse também descreve a estratégia do GPAE como algo muito parecido com a atual, na qual “territórios seriam primeiramente ‘conquistados’ dos traficantes e depois ‘controlados’ por forças especiais localizadas fisicamente na área” (MISSE, 2012).
[8] “Rocinha e Vidigal estão entre as 40 favelas que o Estado quer pacificar”, disponível em. http://www.rocinha.org/noticias/view.asp?id=818.
[9] “Eu não entendo por que colocam recrutas para montar UPPs. Eles dizem que, na média, são uns 200 recrutas com um oficial. Nas 14 UPPs, dá algo em torno de 2,8 mil recrutas, 3 mil recrutas. Então, 3 mil recrutas estão resolvendo a situação da criminalidade no Rio? Tem um contingente de 40 mil policiais, mais 10 mil na Polícia Civil, que não resolveram o problema da criminalidade. É isso que estão dizendo? Se é isso, estão confirmando que o problema é corrupção” (LUZ: 2012).
[10] Disponível em: http://sinaldemenos.org/2013/01/21/sinal-de-menos-9/
[11] O ex-prefeito César Maia, que protestou contra a “privatização” das ruas pelo comércio ambulante, foi um dos principais ideólogos dessa virada que culminou no projeto da “Cidade Olímpica”. Não por acaso, os temas da ordem urbana e da militarização da segurança também fizeram parte da sua “agenda” desde o inicio dos anos 1990. Mas, no que diz respeito às políticas urbanas, essa inflexão deve ser relativizada. Fruto da conjuntura de crise estrutural, o governo de Leonel Brizola, no início da década de 1980, já teve como característica a impossibilidade de realizar investimentos públicos em grande escala para a reforma urbana. Diante do problema da habitação popular, o governo foi forçado a “conduzi-lo oficialmente nos moldes do que já vinha sendo feito espontaneamente” pela população pobre da cidade. A atuação do governo e das administrações municipais, consideradas as duas décadas em questão, consistiu em aceitar, legalizar e promover algumas melhorias nas favelas – tudo isso em meio a um “giro culturalista” que substituiu as idéias de planejamento global da cidade pela revalorização do “espaço comunitário” e das “soluções criativas” dos moradores das favelas. Sobre isso ver o texto de Maurilio Lima Botelho, “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres”, a ser publicado na coletânea indicada acima, pela Editora Boitempo.
[12] Luiz A. M. da Silva, “Pacificação ou controle autoritário”, entrevista disponível em: http://comunidadesegura.org.br/pt-br/MATERIA-upps-pacificacao-ou-controle-autoritario.
[13] “Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para a Copa do Mundo”, diz Raquel Rolnik, em entrevista concedida à revista Caros Amigos de janeiro de 2011, disponível em: http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/cotidiano/1218-entrevista-raquel-rolnik..
[14] Caso semelhante ao do Dossiê aqui analisado é o do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, que, durante a campanha para a prefeitura, desenvolveu um discurso bastante articulado sobre o “modelo de cidade” baseado na lógica do mercado, mas evitou confrontar diretamente o programa das UPPs. Foi mérito inegável de sua campanha (e de sua ação parlamentar) deslocar o foco do debate para o que poderíamos chamar de lado obscuro da “pacificação”, ou seja, o crescimento alarmante dos grupos milicianos nas periferias da cidade. A dificuldade de interpretar as UPPs como parte do “modelo de cidade” denunciado pela campanha de Freixo não deve ser vista apenas como uma incapacidade de compreensão da lógica da “pacificação”. Mais do que isso, ela expressa a contradição que se verifica no interior das camadas populares, que se consideram ao mesmo tempo “libertadas” e “oprimidas” pelo policiamento permanente. Em todo caso, Freixo não deixou de observar, em várias intervenções, as diferenças entre o programa das UPPs e os princípios do “policiamento comunitário”.
[15] O que ocorreu num quadro mais abrangente de endividamento estatal e de esgotamento dos modelos periféricos de desenvolvimento: “Planejamento urbano, política de transporte de massa, programa habitacional, zoneamento espacial, todos os principais pontos de uma política urbana ampla desapareceram com a crise geral do Estado e da economia desenvolvimentista. Foi nesse contexto que o chamado “problema favela” explodiu, já que essas áreas de precariedade urbana e habitacional continuaram a crescer aceleradamente, apesar de o país estar passando por um freio demográfico, isto é, próximo da última fase da transição populacional” (Trecho do artigo de Maurilio Lima Botelho ainda inédito, “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres”).
[16] As abordagens que enxergam o desenvolvimento das milícias ou a criminalização dos pobres como o objetivo das intervenções na segurança pública acabam promovendo apenas uma inversão do ponto de vista segundo o qual tais fenômenos seriam efeitos secundários das estratégias de segurança do Estado. Com a referida inversão corre-se o risco de perder a dimensão estrutural do problema, que se vê reduzida à intencionalidade dos “atores sociais”. Dito de outro modo: é um tanto absurdo afirmar que as estruturas mafiosas e a vigilância nas favelas são objetivos inconfessos que as políticas de Estado devem “mascarar”. Mesmo quando os agentes do Estado fabricam um inimigo como o “crime organizado” – ou eles próprios se organizam de forma ilegal –, o fazem através de relações de poder e interesses imediatos e não “a serviço” de um projeto político. A ampliação dos mecanismos de controle sobre a população pobre não é, portanto, nem um efeito secundário nem uma meta a ser alcançada e sim um segundo aspecto, igualmente importante, das novas formas de administração da pobreza que se impõe aos governos quando os mecanismos de integração social perdem força. E as milícias, por sua vez, são a expressão mais clara dessa integração “falhada”.
[17] Mas não se pode dizer que tal processo siga fielmente a uma “estratégia de classe” ou que seja determinado pela “espacialização da dinâmica de classes” como sustenta o autor. A segregação espacial corresponde, antes, a uma diferenciação entre os segmentos da população que se encontram em uma situação de maior “integração” à lógica econômica e o segmento de “não-rentáveis”, que também podem ser definidos como uma massa de “desclassificados”. Em outras palavras: a espacialização dos conflitos sociais não é redutível ao conflito de classes. Além disso, também é claro que essa diferenciação entre as elites econômicas e as camadas médias, de um lado, e a população pobre, de outro, não exclui o fato de que o grande volume de investimentos e obras públicas mobiliza um contingente assalariado de baixa qualificação e mal remunerado, mas que se torna parcialmente integrado, o que ajuda a produzir uma diferenciação no interior das camadas populares.