Era uma quinta-feira de fevereiro, no ano de 2000 e em uma casa do subúrbio do Rio de Janeiro um menino de 10 anos brincava em uma piscina de plástico de 3.000 litros, em um quintal de cimento batido e telhado com telhas de zinco, suspensos por algumas pernas de três.
Na piscina com o menino, havia uma pequena lancha de plástico, cerca de 10 centímetros, com a parte inferior branca, e a superior alaranjada transparente que dava para ver os pequeninos banquinhos por dentro, não era de controle remoto como ele via na tv, mas ele podia até afundá-la e depois resgatar, pois não estragava…
Ali, naquela tarde ensolarada do verão carioca ele brincava com o direito a todas as fantasias que um menino, uma piscina e um pequeno barco poderiam proporcionar… Faltavam poucos dias para o carnaval, e já pensava também na sua fantasia de bate-bola…
Até que um tio do menino, único irmão de sua mãe, passa ao lado da piscina, dirigindo-se à saída brincou com o menino como sempre fazia, antes de sair do local onde estava à piscina e o menino, ainda havia um muro, com um portão bem pequeno amarelo enferrujado que separava a casa do menino do resto do vasto quintal. Então, ele disse “Tio, dorme aqui hoje também vem pra piscina, não vai embora não!”.
Mas seu tio lhe disse que tinha que ir, olharam-se por alguns segundos e lentamente virou-se o homem, e o portãozinho enferrujado bateu… O menino continuou brincando com aquela lancha até sua vó lhe chamar para sair da piscina, pois já terminava a tarde, e os dedos já estavam até enrugados e coisa de vó, dizem que faz mal!
No dia seguinte o menino havia saído com sua vó e mãe, uma sexta-feira e foram para a baixada fluminense, exatamente em Vilar dos Teles, comprar roupa e nessa época sua mãe lá trabalhava, e às vezes ele ia vender docinhos no pequeno shopping onde ficava o consultório médico que sua mãe era secretária, de sua pediatra.
Antes passaram em uma loja em São João de Meriti onde uma prima de sua mãe, neta de sua vó trabalhava, telefone celular ainda era caro e, eis que por coincidência toca o telefone da loja, e esta prima de sua mãe atende, e que antes ela conversava tranquilamente com eles, apressa o retorno de sua mãe e vó para casa.
O menino sempre gostou muito de carro, e quando estava a uma quadra de sua casa disse a vó e mãe que o carro de seu padrinho estava parado na sua casa, mãe e vó disseram que não, ou será? Ficaram na dúvida. Quando foram chegando mais perto de casa, em um bar da esquina estava seu pai, à tarde de banho tomado e tênis, ele acostumado a estar sempre sem camisa e de chinelos, era algo diferente.
Um vizinho que passou por seu pai e com ele tinha conversado, quando passou pelos três cumprimentou a Vó do menino e abaixou a cabeça… Mas para o menino nada acontecia ainda, só queria confirmar se realmente era seu padrinho que estava em sua casa.
Então, finalmente, o menino chegou em casa e seu padrinho lá, realmente, estava. Mas desta vez quando o viu, estava sério e nem um sorriso, até cumprimentar sua vó foi meio difícil para ele, amigos há longas datas, pois ele era cunhando de sua vó.
E tudo naquele pequeno corredor da escada aconteceu, sua mãe gritava que não, chorava desesperadamente ele ainda sem entender muita coisa foi subindo e lá seu irmão desceu o quintal e chorava também, seu pai tentava acalmar sua mãe que já era levada para dentro de casa; sua vó com serenidade que ele nunca vai esquecer na sua vida, calma pegou algum pano e passou pela borda daquela piscina de 3.000 litros e lavava aquele pano no tanque de pedra, às águas que pingavam daquele pano, eram suas lágrimas que ela segurava, segurava toda a família.
O menino, levado para o quarto de seus pais pelo seu padrinho jogou os óculos quadrados e grandes, de cor azul na televisão já um pouco velha riscando a tela, e desmantelando todos os óculos, chorou… Que seu padrinho, com calma os catou do chão e consertou.
Então foram levados para Ilha do Governador por seu padrinho após acalmarem-se um pouco, seu pai foi até a vizinha que por vezes criou o menino e avisou que estavam indo. No caminho da estrada em que chegava à casa de seu padrinho, e de toda a família de sua avó materna, num matagal ele viu um carro e falou com seu irmão que era de outro tio-avô seu, o irmão também achou… Mas seu padrinho parece que naquele lugar acelerou mais!
Hoje passaram-se exatos 15 anos deste dia, e o menino perdeu suas fantasias, e hoje já sabe que naquele dia da piscina fora o último dia que viu seu tio, e falou com ele.
Pois ele não estava só se escondendo como o personagem protagonista da novela das 19 horas da TV Globo daquele ano, a novela Uga-Uga como ele por um tempo acreditou, e dizia até para seu irmão isto.
Passaram mais de um ano, e na verdade naquele caixão fechado tinha gente, não fora só a Bandeira do Vasco e da Beija-Flor que pouco antes do cortejo sair, o menino e seu irmão lembraram que seu tio tinha dito que queria ser enterrado com as bandeiras. Quando então, pediram para o tio, irmão mais novo de seu pai para saírem e comprarem… Por incrível, um camelô perto do cemitério tinha a camisa da Beija Flor, era única!
Naquele ano não teve carnaval…
E hoje o menino crescido sabe por quanto e por quem seu tio foi assassinado! Também já sabe, que oito meses depois que despediu-se de seu tio da piscina, aqueles que o torturaram e assassinaram já haviam por mortos, restando apenas um, que o menino ficou sabendo que estava tetraplégico, pois fora alvejado por um tiro.
Sabe também o menino que os que mataram seu tio, já haviam até jogado bola com ele; mas ali era matar e morrer, e isto era questão de tempo, hoje o menino sabe disso. O menino não defende a pena de morte, é contrário a isto! Pois ele viu que depois de seu tio, quantos já foram mortos, ora até os que mataram seu tio foram mortos, e continua gente morrendo todos os dias nas favelas do Rio de Janeiro.
Ele descobriu que o tráfico de drogas é muito maior do que os “traficantes” que mataram seu tio, descobriu que só morre pobre e negro, mas parou pra pensar para onde vai todo aquele dinheiro, qual banco que recebe, pois uma coisa ele tem certeza, na favela o dinheiro não fica!
E assim, depois desses 15 anos o menino chorou novamente, não jogou óculos e nem pensou em subir o morro com fuzil e matar todos que tinham matado seu tio, PENSOU QUE DEVERIA LUTAR PARA ACABAR COM O QUE ACABA COM TODOS OS TIOS.
E teve mais certeza ainda que as favelas necessitem da DESCRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS! Pensou que não podemos deixar passar despercebido toda essa falácia da PENA DE MORTE, DA REDUÇÃO DA MAIOR IDADE PENAL E QUE TEMOS QUE DIZER UM BASTA A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA, ATÉ POR QUE SEU TIO MORAVA EM UM BARRACO, NESSE BARRACO QUE ACOLHIA QUEM PRECISAVA DE UM TETO, TALVEZ, TENHA SIDO SEU PECADO!
Mas não!!! O BEM NUNCA PODE SER ERRADO, ELE NÃO DEIXOU DE VER SEU TIO POR QUE SEU TIO ERA SOLIDÁRIO, AO CONTRÁRIO, SEU TIO FOI UM ALERTA PARA ELE DE QUE TEM QUE LUTAR POR UMA SOCIEDADE SOLIDÁRIA, E IGUALITÁRIA. SEU TIO FOI A EXPRESSÃO DE QUE LUTAR CONTRA A DESIGUALDADE, LUTAR PELO SOCIALISMO É LUTAR PELA VIDA!!! O menino cresceu… E não fala por que não foi com ele!