Os recentes acontecimentos, de uso “selvagem” da maquina policial contra as populações carentes do Rio de Janeiro não pode passar em desapercebido: trata-se de uma reedição contemporânea do mito das classes perigosas. Tem por trás de si um recurso ideológico que precisa ser denunciado: a indesejável presença de excluídos no pactode integração urbana, legitimado por Estado e sociedade em nossa cidade. Ressurgem as sentenças de classe e com elas o estigma da marginalização.

 

Na cidade do capital, impera o ressentimento e a culpabilização do indivíduo, que torna-se a tese de Lambroso, isto é a idéia de que existe um indivíduo delinqüente nato, colocando sobre ele a culpa de uma crise que é estrutural, que responde muito mais a políticas públicas, dentro dos limites da democracia de mercado, do que uma incapacidade de inscrição cidadã dos moradores das favelas cariocas.

 

Sob a égide de um comportamento ideal sentenciamos o “diferente”, o de”cor”, de comportamentos e hábitos “vulgares”, de gosto duvidoso para a etiqueta, de palavreado “chulo” como o provável bandido. Apesar destes frequentarem nossas casas (na qualidade de domésticas), serem”quase” da família quando empregados, serem excelentes “quituteiros”, dançarinos e bons de batucada são visto como presença indesejável na cidade desde sua tentativa fracassada de se tornar Paris por volta de1920, nos tempos da reforma “higienizadora” de Pereira Passos.

 

Os recentes avanços da discussões raciais, dos direitos humanos, das políticas de ação afirmativas como as cotas são fruto das lutas históricas de oprimidos de todo o planeta. A beligerância entra em crise na opinião pública, mesmo quando potências mundiais ainda escolhem essa ação. ONG’s de todo o planeta proliferam-se pela América Latina, com bandeiras como ecologia, afirmação positiva, e integração social. A sociedade civil abandona as tradicionais táticas de remoção e pensa a favela como problema social, mesmo que este tenha sido fruto dos problemas históricos apresentados por estes moradores ao restante da sociedade, questões que foram colocadas em debate, seja pela ação de mediadores, ONG’s, imprensas, seja pela ação de movimentos culturais, ou mesmo por manifestações diretas nas ruas, desde atos pacíficos até quebra-quebra de ônibus.

 

Hoje são inúmeros os programas que atuam dentro das favelas. Associações de moradores, ONG’s, programas públicos de capacitação de renda, inúmeras formas de assistencialismo e etc. Estes programas ampliam o debate sobre o pacto urbano, e é visível que a sociedade não pode mais neglicenciar o problema. Mesmo que de maneira muito precária a cidadania e a noção de direitos começa a fazer parte da pauta política dessas sociedades, e isso tem muito tempo. Entretanto o pobre, só recebe do Estado e da filantropia assistência passa a viver no fio da navalha, ora “brasileiro” (aquele que não desiste nunca), ora “violento”, tipo social dotado de maldade e de anarquia. Note aqui que o perigo maior é não dizer que o tipo social violento é somente fruto da sociedade que o edifica, mas também associado a termos como irrecuperável, este debate não pode ser considerado ainda ultrapassado pelo motivo de que ele é um dos principais bastiões da redução da menoridade penal.

 

A punição aparece como a benção da sociedade civil aos pecadores do pacto urbano, os pecadores de sempre, os batedores de carteira de sempre, os camelôs de sempre, os acomodados e desempregados de sempre, aos não batalhadores de sempre. Sempre pobres, sempre pobres que quando pouco conseguem algo na vida é ser mais ou menos explorado por um extrator de mais valia de plantão.

 

Não se trata mais de culpabilizar o indivíduo pela cor da pele. Não setrata mais de dizer que cidadania escassa recupera ou mesmo acomoda os excluídos do direito à cidade. Trata-se de afirmar com todas as linhas que somente inclusão social efetiva e uma larga redemocratização do espaço político e social urbano pode promover alguma repactuação à cidade barbarizada.

 

Digo isso, porque enquanto enxugamos gelo, a elite conservadora de plantão não para de agir e voltar a cena com seus ideais conservadores sobre raça e classe. Foi ai que a polícia do Sérgio Cabral agiu, decretou pena de morte a um grupo de aproximadamente vinte jovens vinculados ou não com o tráfico.

 

“Ocupou” com sangue a comunidade. Essa é a lamentável ocupação do público nas favelas. Repressão e mecanismos de vigilância, escolas fechadas e postos de saúde destruídos.

 

Matamos mais que países em guerra civil. Nossos hospitais recebem vítimas da violência em números mais elevados que países em guerra.

 

Nesse momento valorizar a vida é valorizar o ser humano, e ao que acumulamos na história da humanidade, esquecendo a falácia ideológica da direita conservadora, valorizar o ser humano é viver em uma sociedade mais justa e fraterna , não só com as diferenças , mas justa frente a desigualdade, uma sociedade onde o homem não explore o homem, ou pelo menos não o barbarize, não o impeça de exercer seus direitos políticos, de opinar e construir o mundo em que este almeja viver.

 

Basta de não fazer nada pelos que se encontram em vulnerabilidade e somente erguer muros em condomínios fechados, sem saber o que fazer na próxima chacina, acuados pelo medo da violência, que pela indiferença, pela cobiça ou mesmo, pelo esquecimento erguemos dia a dia. Chegamos ao ponto de usar nas favelas cariocas o mesmo blindado usado contra negros na Africa do Sul em tempos de apartheid. Não é possível que continuemos acreditando que extermínios resolverão nossos problemas. Se não acreditamos, precisamos repensar a cidade, o excludente pacto urbano, dizer não as ações deste governo, e agir, abandonando a indiferença e atuando contra o ataque e a estigmatizaçãode pessoas, seres humanos, pobres e excluídos por questões muito mais sérias que falta de oportunidades.

Guilherme Vargues – Sociólogo