Por Marcos Barreira, André Villar Gomez, Maurílio Lima Botelho e Javier Blank
As eleições na cidade do Rio de Janeiro estão polarizadas entre um populismo pseudorreligioso e a esperança na renovação da política. Freixo e o Psol representam a segunda alternativa. Não são poucas as dificuldades dessa candidatura. Como se não bastassem uma legislação eleitoral e a cobertura midiática que privilegiam descaradamente os candidatos mais retrógrados, ela também se depara com uma enorme dificuldade de fazer sua mensagem chegar às favelas e periferias da cidade. Não se trata de marketing eleitoral. Para se aproximar dos segmentos mais pobres da população, um pequeno partido de esquerda como o Psol precisa concorrer com aparelhos políticos tradicionais, ajustados agora à forte presença das seitas fundamentalistas e dos grupos mafiosos que exercem um controle armado sobre territórios. Mais ainda: é preciso levar a sério o fato de que, ao longo da última década, as “políticas sociais” desenvolvidas para as populações marginalizadas das periferias eram o contrário de um processo de mobilização popular. O que resultou desse tipo de política foi um vínculo puramente monetário dos segmentos de baixa renda com o governo e a propagação de uma cultura popular de consumo e ascensão individual. Não por acaso, os adversários da campanha de Freixo neste segundo turno eram uma parte essencial do “pacto social” lulista.
O problema que afeta mais diretamente as favelas e periferias é a criminalidade violenta: não só os traficantes armados, mas igualmente a violência praticada pelo Estado contra populações pobres. Nos últimos anos, a resposta dos governos para esse problema foi a ocupação policial militar permanente das favelas. É preciso ter clareza de que não estamos diante de uma política estadual de segurança. As UPPs são parte de um modelo de cidade idealizado por gestores neoliberais nos anos 1990 e implementado por meio de “parcerias” criminosas entre poder público e grupos empresariais. Por isso elas só existem na capital. Também os governos de Lula e Dilma, quando as alianças políticas ainda juntavam siglas aparentemente muito diversas, utilizaram a experiência carioca de “cidade empreendedora” e “pacificada” como referência para o resto do país. Recentemente, a crise fiscal do Estado colocou em xeque a continuidade das UPPs. Ao mesmo tempo, ficou evidente que a ocupação de algumas favelas poderia gerar benefícios isolados e, sobretudo, produzir uma imagem de segurança para a “Cidade Olímpica”, mas não era capaz de modificar o quadro geral da violência. Ao contrário, as UPPs apenas alimentaram as disputas entre grupos armados por territórios. Elas direcionaram esses conflitos – que se tornaram ainda mais violentos – para longe da vitrine de segurança construída com o objetivo de atrair turistas e investimentos para as áreas ricas da cidade. Junto com as dificuldades de financiamento, a própria ideia de uma cidade pacificada pela via militar foi pouco a pouco perdendo credibilidade. Muitas áreas “pacificadas” tornaram-se locais de guerra permanente. Esse desenvolvimento era previsível. Não era nada difícil compreender o que estava por trás da “ocupação dos territórios” e o uso político que se fazia dela. Sabia-se de antemão que, em alguns anos, estaríamos debatendo as causas do fracasso das UPPs – pelo menos relativamente aos objetivos declarados.
a candidatura de Freixo escorrega ao procurar nesse tipo de intelectualidade midiática uma pretensa alternativa para a barbárie policial
A atuação da administração municipal ficou limitada a uma contrapartida social do processo de “pacificação”. Além disso, há o repasse de recursos municipais para as unidades policiais. A “UPP Social” foi considerada uma ficção até mesmo pelos setores menos críticos. Também ela era pensada como estímulo ao empreendedorismo local, isto é, como um processo ilusório de integração mercantil das favelas alimentado pela ideologia lulista do “capitalismo popular”. (A UPP Social acabou sendo também uma forma de o Estado controlar as iniciativas locais e externas que incidiam sobre esses territórios). Outra miragem que se formou no auge dessa ideologia é a de que a UPP havia transformado o padrão de relacionamento entre a polícia e as comunidades. A ocupação militar das favelas chegou a ser vendida como “desmilitarização” da segurança pública. Hoje, os defensores da pacificação já não são capazes de repetir tais afirmações. No entanto, são precisamente essas ideias falhadas que, agora, um grupo de especialistas pretende reafirmar, emprestando-lhe um verniz progressista no âmbito municipal. São pesquisadores que, desde o início do atual governo, usaram suas posições na universidade para, de modo bem pouco sutil, legitimar a ocupação das favelas. E a candidatura de Freixo escorrega ao procurar nesse tipo de intelectualidade midiática uma pretensa alternativa para a barbárie policial. São eles os mesmos que encobriram de modo sistemático a relação da UPP com o projeto de cidade segregada e voltada para a lógica econômica – um projeto que a candidatura de Freixo não deixou de denunciar. Isso foi possível graças a uma visão fragmentária, bem ao gosto do relativismo cultural, que se recusa a pensar a cidade como um todo, adequando-se igualmente à lógica do empresariamento urbano. Quando se alega que um “mapeamento da violência” poderia modificar os critérios que orientam a Secretaria de Segurança do Estado, tendo em vista que as áreas mais pobres e mais violentas da cidade são as mais negligenciadas pelo Estado, isso revela apenas a incompreensão de que a UPP foi pensada sob medida para pontos estratégicos da cidade.
O verdadeiro sentido das UPPs, que a proposta de ampliação da participação da Prefeitura na política de segurança pretende obscurecer, é funcionar como uma ideologia de segurança das camadas médias (e não só como “sensação de segurança”, mas igualmente em termos materiais, tendo em vista que elas foram as beneficiadas pela valorização dos seus imóveis). A UPP só pode funcionar onde há um contraste muito evidente entre favela e asfalto e funciona precisamente como uma forma de reprodução da segregação. Ao invés de dar um último fôlego de legitimidade a um projeto desacreditado – em primeiro lugar, no interior das próprias favelas -, seria preciso inverter a perspectiva e estabelecer um diálogo com as comunidades a partir do ponto de vista de quem mais sofre com a violência cotidiana, seja praticada pelo Estado ou pelos bandos armados. Exemplar nesse sentido foi o combate às milícias – levado a cabo corajosamente pelo mandato de Freixo. Com o fracasso da “Cidade Olímpica”, não há mais como não reconhecer que a política de segurança atual está a serviço de um modelo de cidade cada vez mais polarizada e violenta. Por isso, não se pode deixar de apontar o caráter mistificador das ideologias da integração mercantil das favelas e da “pacificação”.