Lentes de contato que fotografam, aplicativos de reputação que geram benefícios reais, um personagem de desenho animado que se torna primeiro-ministro… O universo fantástico e distópico da série britânica Black Mirror, cuja terceira temporada está disponível no Netflix desde o fim de outubro, é o grande assunto das últimas semanas. Povoado por um mundo branco e de classe média, a série se abstém de tratar de temas raciais e sociais, jogando luz sobre os temores políticos e até afetivos que uma sociedade tecnocrata pode viver quando enclausurada em um panóptico de terabytes. As diferenças parecem inexistir em seu futuro rígido, plano e ironicamente (sim!) igualitário – ou seja, até utópico, pode-se dizer. Mas parece não haver lugar para a periferia neste tempo-espaço hipotético.
Ainda que o capital cumpra seu papel de vender a ideia de que a tecnologia tal qual conhecemos surgiu para melhorar a vida humana, ela segue como instrumento de poder de quem o detém. As máquinas, que num mundo idílico deveriam ter sido criadas para que o trabalho tomasse menos tempo da vida das pessoas, se converteram em simples elementos de opressão. O capitalismo modela o acesso à tecnologia, cumprindo com seu papel de abrir portas apenas a quem, de maneira mais imediata, possui mais dinheiro. Em termos práticos, isso se mostra real no acesso aos gadgets tecnológicos, que podem custar pequenas fortunas para o trabalhador médio (o animal laborans de Hannah Arendt, aquele que tudo reproduz), até os investimentos em pesquisas científicas, concentrados majoritariamente nos países desenvolvidos.
Nem tudo está perdido, aparentemente. Ainda podemos contar com as maravilhas da criatividade de quem tem pouco – a reinvenção gera oportunidades e derruba barreiras que interpelavam os excluídos. Um caso à parte é a Índia, país com alta porcentagem da população vivendo abaixo da linha da pobreza, mas que se destaca pelos esforços em prol da educação e da ciência. A cultura maker, que também leva os conceitos de inovação à periferia global, é o resultado positivo de um sistema que não contempla a todos na acessibilidade à alta tecnologia. Ela não pode, de maneira alguma, ser encarada como um mero prêmio de consolação: os 2 bilhões de usuários de smartphones no mundo (ou seja, 1/3 da população mundial) sugerem o contrário, assim como o acesso à informação ampliado pela internet.
Mas quando falamos de alta tecnologia e qualidade de vida, definitivamente estamos longe do mundo ideal. A tecnologia se converteu em puro consumo, artigo de luxo numa prateleira de possibilidades disponíveis para alguns privilegiados. De que adianta sonhar com robôs quase humanos quando outros 2 bilhões de pessoas no planeta vivem sem saneamento básico adequado? Como se pode pensar nos benefícios da tecnologia quando esta é só mais um indicativo do aprofundamento das desigualdades sociais e que pouco tem melhorado o acesso à educação dentre aqueles que mais precisam dela? Ou seja, onde estará a periferia e todos os seus problemas em um futuro imaginário? Haverá lugar para a pobreza nesse amanhã em nuvem?
O panorama parece sombrio tal qual um episódio de Black Mirror: a periferia é apenas o não lugar – ela não existe nem quando a utopia se finge de morta.