A História nos fornece um maravilhoso exercício de imaginação. Trata-se de visualizar, intuir as sensações, captar ambientes e modos de vida de outros tempos. Distante ou local, a História também nos fornece um maravilhoso exercício de autoconhecimento. É ainda um constante exercício de empatia, de se colocar no lugar do outro e de entender a curva recorrente da crueldade nas relações humanas. Aprofunda percepções familiares, sociais e estéticas. A História também nos proporciona constatações críticas sobre os efeitos da ambição desmedida e estimulantes relatos sobre revolta popular e conquistas coletivas.
A História motiva ou deprime. A História pode ser um instrumento de repressão ou de libertação. Por isso cuidado, meu irmão, há perigo na História. Poderosos mecanismos narrativos tendem a ser distorcidos, manipulados. Sabe os perigos da Imprensa e suas ostensivas manipulações? A História, no que ela tem de ostensivamente exposto (televisão, sistema educacional, monumentos públicos, museus, imprensa, cultura de massa), pode causar distorções tanto quanto a sempre criticada grande mídia. Uma pode distorcer o presente, a outra pode distorcer o passado – e a gente que se vire pra intuir e perceber.
A História também pode ser gentrificada, racista e eurocêntrica. Precisamos ainda driblar condicionamentos mentais do Colonialismo que nos formou. Existe uma História Ostensiva, que mergulha na nossa frente a cada momento, através de diversos mecanismos. E existe uma História feita com mais rigor, pesquisa e sensibilidade. A oferta é ampla e precisamos aprender a navegar no mar de narrativas.
Mas a verdade facilmente comprovável é que sabemos muito pouco da África. A História da África é parte do passado brasileiro, assim como a História Indígena e a História Europeia. Berço de parte significativa de nossa população, a África e sua história ainda é uma imensa desconhecida da população brasileira. Precisamos estar conscientes disto e encarar como imensa tarefa de educadores, artistas, fazedores de cultura, gestores públicos, pais e mães e cidadãos, uma aguda mudança nesta triste realidade, tão reveladora dos descaminhos de nossa sociedade.
Na semana seguinte às reflexões que fizemos sobre nossas raízes africanas, a cidade assiste à polêmica em torno da questão, trazida à baila pela secretária de cultura Nilcemar Nogueira, neta de Dona Zica e Cartola, a respeito da criação de um suposto “Museu da Escravidão”. A polêmica girou em cima do nome (que não é só denominação, é conceito) e envolveu uma galera da pesada, como Nei Lopes e Luiz Antonio Simas.
Os investimentos culturais mais ostensivos da última gestão municipal estão localizados justamente na região portuária carioca, maior portal global da migração África-Brasil. O grande Museu do Amanhã dá as costas a este passado e é o que mais brilha na propaganda ificial. Sobre o circuito da Herança Africana, parece que todo o seu legado está restrito a um mero documento.
Há um longo caminho a ser percorrido. Acho ótima a idéia de um Museu da Herança Africana. Acho necessária e potente. É sinal também de que “representatividade” de fato importa, e que foi preciso uma secretária negra para que um projeto destes possa se concretizar. Mas uma tarefa também se impõe em relação à juventude negra de nossas escolas públicas: um programa cultural-pedagógico que faça o espaço escolar refletir sobre História e vibrar com a cultura africana, dialogar sobre as relações entre nosso presente cultural e nossos antepassados africanos, sobre racismo e escravidão, mas também sobre riqueza, potência, legado.
A História e a África são verdadeiras esfinges a nos desafiarem. A singular geografia das savanas e do imenso deserto, as comunidades costeiras, a floresta equatorial, a Jihad islâmica e seus efeitos os reinos e impérios. O Império Wolof, o Reino de Oyo, o Reino de Daomé, os agudás de Benin, o Forte de São Jorge da Mina, o Forte de Arguim, a história antiga do Senegal, Congo, Angola, Benin, Togo, Moçambique e outros países de onde vieram tantos de nossos antepassados. Os escravos trocados por cavalos que geravam novas expedições para capturas de mais escravos, que eram trocados por armas, que geravam novas guerras, que geravam mais e mais escravidão… E a arte, a religião, a cultura, os hábitos, os regimes políticos.
São muitas Áfricas… E quanto mais as conhecermos, mais intensa e reveladora será nossa visão sobre nós mesmos e sobre as forças que nos constituem. Há um imenso passado à nossa espera.