As aulas devem começar no próximo mês, com vagas limitadas
Agora a comunidade do Jacarezinho (Zona Norte do Rio), vai poder contar a sua história. A partir de julho, o curso de Formação de Agentes Comunitários de Comunicação, iniciativa da Agência de Notícias das Favelas (ANF), vai abrir 12 vagas para moradores interessados em divulgar o que acontece na área. Segundo a coordenadora do projeto, Débora Lerrer, o conteúdo produzido, que vai ser disponibilizado no site da ANF, é uma forma de dar voz à comunidade. A jornalista é autora do livro A degola dos PMs na Praça da Matriz – Como a mídia fabrica e impõe um fato, sobre o conflito entre a polícia militar e os sem-terra, em 1990, no centro de Porto Alegre. Com um mestrado em comunicação pela Universidade de São Paulo, Débora conta ao JB como surgiu a ideia do curso.
O jacarezinho é uma das comunidades do Rio que ainda são dominadas pelo tráfico e tem uma das maiores cracolândias da cidade. Você não tem medo de dar aulas lá?
Na verdade, eu nunca fui lá, não conheço exatamente como é. Mas não tenho medo, eu sou de Porto Alegre, sempre morei perto de favela, que lá tem outro nome, vila. O medo não passa pela minha cabeça. Tenho uma experiência com situações “perigosas”, porque comecei como jornalista no Movimento dos Sem Terra e durante anos fiquei em contato com comunidades pobres, com a situação dos acampamentos. É verdade que são situações diferentes, mas talvez por isso eu não tenha receio da favela. Esse contato orgânico com o que está “do outro lado” me faz falta. O MST é estigmatizado, assim como os moradores das favelas são, e como os pobres são. A diferença social ainda é muito forte no Brasil.
Você acredita que exista manipulação da informação do que acontece nas comunidades, especialmente quando há conflito?
Sim. Em tese, a informação que tem mais peso é a autoridade oficial, da assessoria de imprensa dos serviços de segurança pública, por exemplo. Mas isso é só um lado da história. Então, o dever do jornalista é conseguir entrar no local do crime (o que muitas vezes não é possível) e escutar a outra versão da história. Se o outro lado tem a chance de expressar claramente o que aconteceu,e de maneira crível, então vai conseguir rebater a versão oficial. Por isso é importante o jornalista estar lá, falar com mais gente, investigar para enriquecer a informação.
Em Santa Teresa, Débora conta ao JB quais são os objetivos das aulas
E é aí que entra a ideia do curso?
O curso seria um caminho pra isso, para capacitar quem tem o olhar de dentro, assim eles poderão contar suas histórias de uma maneira mais comunicativa, atraente e que consiga rebater ou, pelo menos, questionar as outras versões. Queremos dar ferramentas para que eles possam retratar o que acontece lá de acordo com os olhos deles. Tem uma vida dentro da favela, um mundo de coisas acontecendo, e versões de histórias que são diferentes. É diferente se você tem o seu lugar onde divulgar isso, mas para ter credibilidade é preciso ter as noções de jornalismo, como apurar, como escrever. Não é só inventar ou contar os fatos.
Houve algum evento recente no Rio que tenha chamado sua atenção devido à má cobertura da mídia?
Quando eles fizeram as últimas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em Santa Teresa, a mídia começou a dizer “agora a cidade está pacificada”. Isso me assustou. Então, quando teve o massacre na escola de Realengo, o jornal O Globo dizia que era a volta da violência na cidade pacificada. Está certo que diminuíram os números de homicídios e roubos. Mas dizer que estamos pacificados é imposição de fato. O próprio Beltrame [Secretário de Segurança do Rio de Janeiro]está pedindo agora trabalho social nas comunidades. Não adianta só colocar polícia, pacificar é o processo todo: tem que ter serviço público, tem que ter agentes públicos.
Quando morou em Porto Alegre, você viu de perto a realidade do Movimento dos Sem Terra. Você chegou a passar por situações de perigo?
Dizer que estamos pacificados é uma imposição de fato
Passei por despejos violentíssimos. Famílias com crianças e mulheres envolvidas nos conflitos. As pessoas se sentem brutalizadas, quando só querem viver dignamente, garantir uma vida segura para os filhos. E os despejos sempre aconteceram com muita violência, a polícia sempre foi violenta nessas situações.
Foi essa experiência que a levou a escrever o livro A degola dos PMs na Praça da Matriz…?
Imagine uma batalha campal no centro da sua cidade. Estive no conflito da Praça da Matriz, quando aconteceu essa batalha entre a polícia militar e os sem-terra. Eu era estudante, e um colega me falou o que estava acontecendo, então fui lá fazer cordão de isolamento em frente à Prefeitura, porque corria o risco de o batalhão invadir o prédio. No meio disso tudo, conheci algumas pessoas que estavam envolvidas no conflito e fui investigar a história. Descobri que nem tudo o que aconteceu foi contado. Uma edição da revista Veja sobre o incidente, por exemplo, simplesmente omitiu que uma mulher tinha sido baleada no entrevero que causou a morte do cabo Valdeci de Abreu Lopes. Eu mesma entrevistei essa mulher, Elenir Nunes, no pronto-socorro. Era uma mulher baixinha, magra e frágil – não dava para imaginar que ela tinha assassinado o policial. Mas para o azar dela, o tiro que levou transpassou o corpo e não tinha bala para provar que o PM tinha disparado antes. Então ela foi indiciada como co-autora do crime.
E ninguém falou sobre isso, na época?
O diferencial do meu livro é que eu entrevistei os jornalistas que cobriram esse evento, muitos me disseram que realmente essa era uma informação que não sabiam. Outra coisa que foi dita, é que o policial foi degolado. Ele não foi degolado, ele foi morto com um corte a faca na carótida. Naquela situação de pânico, tudo poderia acontecer, porque o policial estava sozinho e, talvez por medo, tenha atirado, eu acho. Ele é uma vítima fatal, sim, mas a história foi muito mal contada porque os sem-terra eram muito estigmatizados na época.
Você tem notícias dos personagens que viveram essa história?
Eles foram condenados e cumpriram pena, cumpriram regime semi-aberto e ficaram fichados. Mas hoje estão todos assentados, um dos sem-terra inclusive virou frei. A mulher baleada está assentada também.
Fonte: JB on line – 16 de junho de 2011