Um fuzil automático leve (FAL) de posse do Estado, comprado por um orçamento público e manuseado por um funcionário deste mesmo Estado fez disparos incessantes diante de uma escola sem muro de concreto em horário de funcionamento. Dois bandidos foram baleados e caíram do lado de fora da escola. Mas como não havia nada que impedisse as balas de atravessarem a escola, elas também atingiram (4 vezes!) o corpo da menina Maria Eduarda, que morreu no pátio, diante de todos.
Como pode um agente público disparar um fuzil na direção de uma escola em funcionamento? Como pode uma corporação permitir um procedimento como este? Como é possível que – diariamente! – ações policiais com armamento pesado aconteçam justamente no horário de saída ou entrada das escolas? É um absurdo recorrente. E, como tantos absurdos recorrentes em nossa cidade, é um absurdo normalizado.
Diante de uma escola lotada, os gatilhos sequer hesitam! E está lá o corpinho inocente, estendido no chão. Nefasto chão, horrenda terra infanticida. Para onde rumamos? Parece que o terremoto começou, mas todos cismam em tentar caminhar normalmente.
Os jornais estamparam horrorizadas manchetes, as redes sociais ecoaram o pavor que muitos sentiram (ainda que não todos). Fiquei pensando que é necessário um protesto, uma grande campanha de proteção às escolas, uma pressão popular forte sobre a Polícia para que a barbárie dos tiroteios inúteis cessem imediatamente. Circulam textos com este teor.
Uma tarde na Câmara
Dois dias depois, recebi pelo Whatsapp três fotos do plenário da Câmara dos Vereadores. Uma audiência pública acabara de começar. Iriam discutir no parlamento da cidade o Plano Municipal de Educação. Criei uma expectativa e pensei que tinha que ir para lá. Supus que deveria haver uma comoção, os representantes tentariam propor algo, debateriam a violência crescente que ceifa a vida de alunos e impede as escolas de funcionarem. Qual será o plano?
Por algum motivo, dei um zoom nas fotos recebidas e consegui ler os cartazes que os participantes ostentavam nas galerias do parlamento. Foi um primeiro susto: “não à Ideologia de Gênero”, “Deus criou o homem e a mulher” – foram os que consegui ler. As galerias estavam cheias, mas não lotadas. Por uma destas artimanhas do destino, meu compromisso para a manhã havia sido cancelado e corri para a Cinelândia.
Na entrada da Câmara, a funcionária que cadastra quem entra me disse que eu teria que ir para o Salão Nobre, porque as galerias estavam lotadas. Questionei. Falei que vi fotos e que havia, sim, espaço. Ela me indicou um outro funcionário, que só então liberou minha entrada para a galeria. Já achei estranho…
Peguei logo de cara um time singular de oradores: um padre, uma psicopedagoga antiescola e um cara com a camisa do Batman. Suas falas foram chocantes. Paulo Freire, caso ressuscitasse, talvez, se atirasse da galeria, fosse para tomar o microfone ou para se suicidar de desgosto.
Qual é a grande agonia destes oradores diante do quadro de nossa educação pública? Eles querem que a palavra “gênero” seja retirada do Plano Municipal de Educação e que os professores sejam proibidos de tocar em assuntos que, para eles, são única e exclusiva responsabilidade da família. Esse, para eles, é o grande problema de nossa educação, ao lado da doutrinação esquerdista que sofrem os alunos… É dose!
A dita psicopedagoga disse o seguinte, mostrando estar pasma com o que, para ela, era um absurdo:
– Um mês de aula no Colégio Pedro II, e minha filha veio me perguntar: “mãe, você é homofóbica”?
Não me contive e gritei da galeria: “Viva o Pedro II! Estudei lá! Viva!”. O exemplo que, para ela, seria o equívoco é, para qualquer educador, o indício do êxito, o fomento ao questionar, inquirir, estudar, aprofundar, descobrir… E aquela galeria B inteira querendo proibir palavras.
A galeria onde eu estava gritou: “Fascistas! Fascistas!”. Eles, de lá, responderam: “Comunistas! Comunistas!”. Comecei a ficar possesso. Quando vi, já havia três seguranças perto de mim, pedindo pra eu maneirar, que não podia ficar em pé, apenas levantar de vez em quando.
A questão é: a escola pública está sempre cheia de urgências. Ninguém pode julgar uma escola de longe. Sem conhecê-la. Sem vivenciá-la. O “chão da escola”, como foi frisado por uma professora, fundamenta os discursos. A escola, claro, é do interesse e da responsabilidade de toda a sociedade. É preciso ter a escuta de todos sempre. Mas precisamos ouvir os professores. Precisamos ouvir os alunos. Precisamos ouvir diretoras e os pais. Precisamos ouvir as merendeiras e o pessoal da limpeza. Precisamos ouvir os estudiosos, os ativistas, os artistas e os fazedores de cultura que atuam dentro da escola pública.
O debate foi sequestrado. A audiência foi estridente e improdutiva. As infinitas agonias concretas não foram tocadas para que se dedicasse o debate ao “inimigo imaginário” de um grupo confuso que não tem nenhuma experiência escolar ou educativa.
Mas quem seriam aquelas pessoas? De onde vieram? Como se organizavam? Eram de alguma igreja? De alguma organização? Então, alguém entrou no plenário e a galeria B se exaltou: levantaram, gritaram, uivaram em êxtase. Só então consegui visualizar: tratava-se de um vereador, filho de deputado eleito com 500 mil votos e cujo nome não vou revelar porque não pretendo dar Ibope a pessoas tão equivocadas. Aí, eu entendi que aquela Galeria B era a claque da tal Família Parlamentar Tradicional Brasileira de Aspiração Fascista. O que é uma escola? Eles não sabem. Qual é a função primordial da educação? Ignoram. A base discurso é rala.
Eu gritei das galerias, possesso. Mas perdi a voz. A ágora institucionalizada da cidade me pareceu inútil. Pareceu-me, a ponto de doer, que ignoram tenazmente os dragões que ameaçam seu povo. Inventam outros assuntos. Fogem dos temas urgentes. E a cidade arde. Sofre. As crianças são fuziladas em meio aos nossos processos de diálogos entre-armas, contra-drogas. Somos obcecados no irrelevante, mestres na arte de fugir do urgente.
Uma merendeira ocupou a tribuna. Ela trabalha na escola onde Maria Eduarda morreu e contou que havia morrido mais uma criança, em mais um tiroteio, a 500 m da escola. Foi dado como um informe. Não pareceu atingir profundamente a ninguém. A mesa solidarizou-se. E só. As dores imensas estão passando batido. A insensibilidade grassa enquanto a galeria predominantemente cristã (de um tipo bem singular de cristão…) diante de mim apoia incondicionalmente representantes que se colocam a favor de execuções sumárias e do armamento de todo o cidadão.
O tempo passou e a audiência inconclusa chegava ao fim. Minha garganta já doía. Levantei-me e saí. Diante da escadaria do Parlamento, sobre as pedras portuguesas da Cinelândia, notei a presença de um grupo de pessoas da Galeria B. Trocamos olhares. Eu me aproximei: “Olha, o que aconteceu lá dentro é democracia, debate, está de boa”. Fui amistoso e gentil. Eles, educados e receptivos. Eu escaneava os olhares enquanto falava. “O que queria dizer pra vocês, apesar de nossas desavenças lá dentro, é que a violência não para de crescer e de ameaçar a escola e as crianças, que tínhamos que fazer um esforço para proteger a escola. A questão que vocês trazem é quase irrelevante ou mínima no cotidiano escolar. Ninguém está doutrinando ninguém em escola. É um inimigo imaginário que tira o foco dos nossos problemas reais. Que foi o que aconteceu hoje. Ninguém discutiu o Plano Municipal de Educação”. Ouviam educados, mas revelando algum desdém com as sobrancelhas. Iniciamos um papo.
Eu, que tanto berrava contra eles, tendo o plenário como fosso entre nós, agora estava ali, doce, dizendo coisas como “a dificuldade cognitiva do deputado em questão”. O coroa do grupo, do tipo bem disposto, saudável, bem trajado, cabelo rente, barba feita, perguntou onde eu morava. Falei: “Santa Teresa”. Ele respondeu: “Belford Roxo”.
Ele revelou seu assombro com a minha barba, mas afirmou achar boa a iniciativa e que eu era “da esquerda Santa Teresa”. Ele me associou ao Foro de São Paulo, à Venezuela, de alguma forma também às FARC. O tráfico carioca, ele indicou, é todo armado pela guerrilha esquerdista. A Polícia? Ele não vai dizer que a Polícia não erra. Mas acha que tem que matar mesmo. Eu invoco a Constituição. Ele reflete. Eu falo que o dito deputado adora a ditadura. Ele contesta: “Regime Militar”.
Depois, voltou a falar da esquerda e disse que Hitler era socialista. Eu falei pra ele estudar mais a história da Alemanha, pra saber que muita gente votou no Hitler para combater uma suposta ameaça comunista. E falei também que foi o Exército Vermelho que derrotou os nazistas no front. Ele reconheceu. Mas disse que foi só no fim da guerra e que isso não mudava o fato de que Hitler era socialista… Depois falou do Lumpenproletariado, que a esquerda mobilizaria a escória da humanidade, prostitutas e pederastas, que “comem crianças”. “Pedófilos”, contestei. Ele disse: “Ah, é”.
Por fim, falamos sobre Maria Eduarda. Um deles disse que conhecia alguém que a conhecia, e que os traficantes atiraram nela por trás assim que a polícia apareceu. E que tem muita criança na favela que já segura um fuzil. Um jovem adolescente cristão, de terno e gravata, da Assembleia de Deus, morador de favela, negro, afirmou que execuções são aceitáveis, compreensíveis. Como pode um discípulo de Cristo apoiar uma execução? Perguntei se ele, enquanto morador de favela, já havia perdido alguém por causa da violência policial. Ele contou a história sobre um primo portador de problemas mentais, que estava numa laje quando a polícia entrou.
Conversamos por quase 40 minutos. No fim, todos riram de mim, porque discordei quando disseram que a Globo era de esquerda. E o coroa ainda se disse entusiasta de Donald Trump. Eu falei: “Você é latino. Sabe o que o Trump pensa de nós?”. Ele, nem aí…
Os problemas, as urgências, as questões de vida ou morte, o Estado super-letal, as escolas perfuradas, as salas de aula fuziladas, os professores em trincheiras de corredores. Todos deitados enquanto o tiro come. Cada bala é o contribuinte que paga. Cada aula perdida nunca mais vai ser reposta. Cada terror psíquico naquela imensa infância dependerá de muitos fatores para ser sanado. Tudo isso foi ignorado naquela triste manhã.
Saí do papo um pouco assustado. Mas assustado-animado, do tipo encontrar-a-disposição-compatível-com-o-dragão. Precisamos dialogar fora de nossas bolhas. Precisamos digerir e contra argumentar. Precisamos lutar por uma educação potente, porque só ela vai desarmar a bomba destas teorias confusas.
Precisamos estar mais dentro deste Parlamento, vivenciá-lo, observá-lo, incidir em suas práticas. Estar lá dentro é fundamental. Ver, sentir a atmosfera, os personagens, a diversidade menos óbvia, os funcionários, ouvir os representantes, escaneá-los. Uma pessoa que entrou na galeria me contou que, ao entrar, um segurança da casa perguntou a ela: “você é contra ou a favor de gay na escola?”. E só então orientou a qual galeria ela deveria se dirigir. Que dialogo revelador…
Mas, afinal: qual era o Plano Municipal de Educação?