O “homem cordial” é um termo criado pelo historiador Sergio Buarque de Holanda nos anos 1930 para representar um tipo urbano, que age pelos instintos do coração, com amor e ódio nas relações interpessoais. Por sua vez, não aceita sistemas opressores e cria suas próprias regras.
Uma jovem professora da educação infantil, depois de se sentir roubada pelo juros e taxas abusivas dos bancos, foi a uma manifestação e fez questão de jogar pedra na vidraça do banco multinacional. Esse ato não resolveu sua questão financeira e nem fez falir o banco. Porém, serviu de válvula de escape para o sentimento de impotência que tinha diante de um gigante do capitalismo.
Quando adolescente, um amigo, sempre que passava perto de uma viatura da PM, cuspia discretamente na lataria do carro. Quase ninguém via. Era um ato pessoal de desagravo. Certa vez, perguntei a ele por que fazia isso, que é uma coisa tão pequena. O amigo, de imediato, respondeu: “Isso é tudo que posso fazer!”.
A luta popular pode ter várias frentes, como a educação, a cultura, a comunicação e também o voto. Contudo, nada se compara a jogar pedra em uma vidraça. Os bancos se preparam nas vésperas das manifestações com tapumes de madeiras cobrindo as fachadas. Eles sabem muito bem por que são alvos de tantos ataques dos manifestantes em todo o mundo.
A violência de uma pedra na vidraça, talvez, possa ser comparada à violência dos inúmeros crimes financeiros e administrativos dos governadores que, hoje, respondem a processos, como Cabral e Garotinho. Pior é a violência dos fiscais do Tribunal da Contas do Estado (TCE), que participaram de todo um esquema de sucateamento para facilitar privatizações, como no caso da Cedae.
Imagine uma massa de homens cordiais, lutando segundo os instintos de seus corações, que durante dezenas de anos foram humilhados pela falta de acesso aos direitos mais básicos, como moradia, alimentação e educação. Esses homens cordiais poderiam decapitar as autoridades, como na Revolução Francesa ou na Independência do Haiti.
O povo que age pelo coração não é previsível. Sua manifestação pode gerar uma revolução inesperada. Por isso é tão importante para o sistema capitalista identificar as lideranças e criminalizá-las, como no caso dos presos políticos das manifestações de 2013. Muitos dos que eram presos não faziam parte de nenhum partido ou movimento registrado. Eram iniciativas independentes que, junto com outras, formavam coletivos espontâneos que logo se desfaziam. Mas é claro que o sistema não iria deixar passar barato tudo isso.
O jovem Rafael Braga foi escolhido para servir de exemplo para que todos os favelados que ousaram lutar desistissem de suas causas. Para nós, pretos e pobres, a prisão é certa. Isso foi bem diferente do que aconteceu com os jovens brancos da classe média que aderiram à luta popular, com pais e grana para pagar bons advogados.
Apesar deste relato, de maneira nenhuma quero incentivar o quebra-quebra nas manifestações desta sexta-feira, em que o país vive o clima de uma greve geral. É muito perigoso. As tropas de repressão estão à espreita. Há sempre quem possa atirar e matar manifestantes em casos extremos. Há quem possa também aproveitar o momento pra agir com o coração, pela vingança. Afinal, aqueles que operam a repressão também são homens cordiais.