Gostaria de falar hoje sobre como a TV Globo presta um desserviço a sociedade através dos seus personagens em muitas das novelas que apresenta. Com o seu olhar unitário, descreve as personagens através de uma ótica cruel, colocando todos no mesmo saco de gatos. Foi o caso da personagem Bibi, mulher de um traficante de drogas na novela do horário nobre A Força do Querer, que terminou na sexta-feira.
Por questões ideológicas, não assisto à Globo e, consequentemente, suas novelas. Ouvi falar sobre a personagem através das redes sociais e digo: Bibi não nos traduz, não nos representa, não nos define. Somos muitas, com origens diferentes, territórios diferentes, comportamentos diferentes.
Por isso prefiro apresentá-los a um texto que fala sobre um pouco de nós.
Família Carcerária – População Invisível
“Não sou eu quem descrevo.
Eu sou a tela.
E oculta mão colora alguém em mim.
(Fernando Pessoa)
Sejam bem-vindos ao mundo daqueles que, mesmo sendo, não são!
Seres invisíveis, destituídos de certezas e buscando equilíbrio a cada parte da etapa cumprida, na tentativa de não submergir ao caos que é viver sem futuro.
Esse é um minúsculo retrato da família carcerária, que povoa as portas das unidades prisionais deste país; na sua maioria, mulheres. Como caminhar nesse terreno pantanoso que é o mundo das prisões? Como sobreviver a ela? Como manter o amor próprio ante a negação contínua de respeito? Como retornar à vida livre resguardando um mínimo de autoestima? São respostas que buscamos no nosso dia a dia para nos mantermos vivas, para chegarmos ao porto seguro que é a reorganização familiar pós-martírio.
Não é uma escolha fácil caminhar ao lado dos que foram punidos, não é uma tarefa lúdica ser esposa, mãe, irmã de um cidadão preso; antes de tudo, o exercício contínuo de autoestima é ferramenta primordial para manter-se o equilíbrio pessoal e familiar. Caminhar, por escolha própria, por veredas que não são as suas e aceitar com carinho as futuras intempéries do tempo é uma tarefa difícil e arriscada; é um grande enigma a ser resolvido.
Amar um cidadão preso é um exercício de doação, é ultrapassar a sua própria pessoa e eleger o outro como objetivo prioritário, é vivenciar a incondicionalidade.
Estar ao lado de alguém apartado do convívio social é abrir mão de sonhos possíveis, é se permitir aprender com os erros que não foram seus e investir continuamente na sinalização de que é possível se reescrever a própria história.
São mulheres que vivem o dia de hoje como se fosse o último, como se devessem absorver tudo em um só momento, por não saberem como será a continuação do que está sendo vivenciado. Mulheres, arrimos de família, sustentáculos de famílias desmembradas, sinalizadoras de mudanças possíveis, buscando diariamente criar formas de ter uma vida minimamente normal.
A família do preso nunca é vista, não é percebida nas diferentes etapas punitivas aplicadas ao seu familiar. Nessa perspectiva, nem a sociedade, nem o Judiciário, nem o Executivo ou mesmo o Legislativo percebem essa população invisível que permeia as prisões; é como se o preso fosse um ser unitário, destituído de laços familiares, como se ele não fizesse parte de algo maior que ele mesmo, que é a sociedade. Não se percebe na pena aplicada o desdobramento compulsório da mesma, sobre a família do apenado. Não somos percebidas como parte da sociedade pelo fato de estarmos ao lado de quem optou por caminhos negativos; só somos percebidas no contexto social quando negamos a nossa própria história, quando mentimos ou omitimos uma parte das nossas vidas.
No imaginário coletivo, a opção pelo que o difere da ‘normalidade’ é sempre uma opção de caráter, o que é basicamente falacioso; existem vários porquês para tal opção e o amor é um deles. As famílias vivem em um mundo dual, assumindo diferentes papéis, para conseguirem a aceitação social. Muitas mulheres alçadas subitamente à condição de arrimo, na maioria das vezes, escondem seus vínculos com a prisão para poderem conseguir ou manter um posto de trabalho; um exercício constante da mentira ou da omissão para que possam permanecer ativas e sustentarem seus filhos. Comumente perdem seus empregos quando os patrões descobrem seus parentescos; são vistas como cúmplices ou possíveis delinquentes, algo cruelmente ‘lombrosiano’. É como se tivéssemos características físicas que nos imputasse o descrédito como pena acessória à pena que compulsoriamente pagamos. É como se possuíssemos uma lepra moral.
Quando ocupam cargos de chefia, seus companheiros presos são relegados ao limbo, pois para serem aceitas devem negar o amor que sente pelo diferente.
Crescer profissionalmente sendo familiar de um preso requer uma grande autoestima, requer o abate de diversos leões diários para continuar se percebendo possível, apesar do que pensam sobre nós. Paulo Freire muito sabiamente diz que: ‘Nenhuma dicotomia é capaz de nos explicar. Não somos apenas o que adquirimos, nem tampouco o que herdamos. Estamos sendo a tensa relação entre o que herdamos e o que adquirimos’.
Quando não moram nos núcleos ou cinturões de pobreza do Estado; onde a comunidade as conhece, muitas mulheres vivem no ‘penoso mundo da negação’. Negam o que são para serem aceitas pelos vizinhos, conhecidos e colegas de escola e trabalho, transformam-se em personalidades duais. Somos percebidas no contexto social quando negamos a nossa própria história, quando mentimos ou omitimos uma parte das nossas vidas. No imaginário coletivo, a opção pelo que o difere da ‘normalidade’ é sempre uma opção de caráter, o que é basicamente falacioso. Existem vários porquês para tal opção, e o amor é um deles.
Quando saem para visitar o seu preso, acondicionam as sacolas de ‘sucatas’ em bolsas de viagem para que os vizinhos não fiquem curiosos. Sentem vergonha da história em que são participantes involuntárias. A pena não é nossa, mas é como se fosse tal o peso do julgamento que fazem de nós. É como se o nosso sentimento fosse criminoso e o amor que possuímos fosse vergonhoso por não sê-lo por alguém ‘normal’, e por isso devemos ser punidas diariamente por nossa ‘má escolha’.
Aos vizinhos, muitas são viúvas ou separadas. Quando se dizem casadas, os maridos trabalham em outro Estado ou estão hospitalizados. Ao ouvirem comentários cáusticos sobre presos e as prisões, sentem-se humilhadas – é como se elas mesmas fossem as criminosas. É difícil ter duas vidas, ser-se e negar-se ao mesmo tempo. Fernando Pessoa confirma nossos sentimentos: “Vive do que nega e nega aquilo que vive”.
Os filhos aprendem desde cedo que o pai está no hospital e, quando já entendem o peso da masmorra, são orientados, na maioria das vezes, a também se autonegarem. Dizem aos professores, vizinhos e colegas que seus pais estão viajando ou estão separados da mãe. Sentem com isso, desde pequenos, que não fazem parte da grande história de uma sociedade e, sim, que vivem obrigatoriamente à margem do que são ou do que poderiam ser.
Muitas mulheres estudam, mas seus professores e colegas não as conhecem. Delas, só veem a face construída sobre a ‘vergonha imposta’, maquiagem usada para a aceitação social.
Muitas vivem em morros e favelas, convivendo diariamente com a violência no batente das suas portas, observando. Na maioria das vezes, acuadas pelos desdobramentos de uma guerra que não é sua. Mas, ao mesmo tempo, a comunidade é o ‘local seguro’ em que elas podem ser elas mesmas, onde não precisam fingir ou negar quem são e o que sentem. É o terreno conhecido, onde muitas possuem a mesma história de espera. Lá, são simplesmente comuns, lá, são casadas com alguém, os filhos têm um pai, e esse pai tem nome, e seus vizinhos sabem para onde vão aos finais de semana.
O caos as torna livres.”