“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida é tão rara…”
(“Paciência”, Lenine)
Ao longo da vida, em meio ao caos, nós deixamos de acreditar nos milagres, pois eles são sufocados pelo cotidiano. É como se as coisas belas fossem apenas faíscas minúsculas no meio da tempestade.
Quando fecho os olhos, ainda consigo lembrar das festas de final de ano. Naquela época de criança e, depois, na adolescência, as comidas maravilhosas feitas pela minha mãe, como pudim de leite e arroz com passas (eu amo passas), abarrotavam as duas mesas grandes lá de casa, que ficavam perto da madeira que sustentava o teto. No ar, o cheiro do frango no forno.
Ainda posso ouvir o som das diferentes risadas dos amigos, que ocupavam cada canto vazio da nossa casa. Os perfumes variados recendiam ao que, hoje, eu descrevo como aroma de saudade.
Durante anos, esse era um dos meus momentos preferidos. Certa vez, minha mãe se vestiu de Bom Velhinho, um Papai Noel negro. No fundo, eu já sabia que era a minha mãe, mas, bem, eu não podia permitir que ela descobrisse que eu sabia (risos). Como eu poderia esquecer o Natal em que ganhei minha primeira bicicleta, junto de uma boneca grande e com cheiro de morango?
A gente se reunir para desembolar o pisca-pisca com lampadas queimadas e desentortar a árvore de natal de ferro era, com certeza, a maratona mais divertida de todas, mesmo que a gente sempre dissesse que, no próximo ano, iria comprar uma árvore nova.
Tudo isso era motivo para comemorar a vida. Estar unidas, na época de natal, era sempre divertido. Nós nos preparavámos para as chuvas de dezembro e ficávamos alertas para uma possível inundação, mas o curioso era que eu não conseguia captar o desespero no olhar da minha mãe. Era como se fosse preciso acreditar que, todo ano, um milagre aconteceria.
A vida foi passando, eu cresci acreditando que nossos ganhos eram menores que as perdas. Certa vez, as águas não levaram nada nosso, mas levaram compras de supermercado de famílias inteiras. Em uma área próxima da minha casa, havia uma favela que abrigava inúmeras famílias, em um terreno que, na ocasião, ficava na parte mais baixa do bairro. Ali, eu vi a crueldade que eu nunca havia percebido. Foi um Natal desolador, muito diferente do que acontecia na minha casa.
Dias depois, a minha sala desabou. Estávamos no quarto e tudo foi abaixo. Ficamos assustadas. Minha mãe sorriu e disse: “Olha que milagre nós estarmos no quarto. Não há problemas, eu já queria fazer uma nova sala mesmo”.
Levei anos para entender novamente o motivo de comemorar. Após as perdas consecutivas e as porradas da vida, eu estava convencida de que nada era motivo de festejar. Mas há coisas que nos fazem transcender. No meio da correria do dia a dia, a busca por calma me fez desacelerar. E, quando a gente desacelera, consegue perceber a paisagem com mais tranquilidade. Conseguimos até mesmo ouvir novos sons, novas risadas. Nós nos permitimos novos amores, novas experiências.
As coisas continuam complicadas ao longo do caminho. Por vezes, eu me questiono sobre qual é o real sentido das lutas e das tarefas pesadas se, ao olhar as estatísticas e o mapa de violência da cidade, por exemplo, não há mudanças significativas.
As respostas, muitas vezes, chegam em forma de mensagem, como de um amigo agradecendo por algo que eu nem lembrava que havia feito ou escrito, ou de pessoas aleatórias, que eu não fazia a mínima ideia de quem eram, relatando as mudanças positivas que haviam vivenciado depois de terem lido um texto meu. Seja através das redes sociais ou das conexões pessoais, eu pude perceber que o milagre que nos mantêm vivos é o cotidiano.
Esse cotidiano que, por vezes, nos faz querer desistir é o mesmo que nos faz continuar. É preciso entender o que fazer com tanta coisa, tanta informação para ter fé na vida. Podemos ir mais fundo e acreditar que, quando criamos uma forma de mudar o mundo ao nosso redor, outras pontes acontecem para mudar todo o resto.
Afinal, como dizem, as melhores coisas da vida não são coisas.