O silêncio jazia por entre os becos, mas os latidos dos cães deram fim. No quarto, lia “A guerra não declarada na visão de um favelado volume 2” do Rapper Eduardo Taddeo, quando ouvi o respingar da chuva. Volto à leitura, porque pra quem viveu num estado que quase nunca chove, a chuva sempre me foi motivo de alegria. Recordei minha infância, quando o cheiro de terra molhada me convidava pra brincar na chuva e tomar bronca de minha vó: “Você vai gripar”, dizia.
De repente, ouvi vozes tumultuando o beco; havia alagado. “Porra”, pensei. “Se aqui tá molhado, boa parte da favela embaçou”. Fui confirmar minhas dúvidas. Era real. O rio havia transbordado. Eu já sofrera com a enchente uma vez. Não perdi muito, porque meu patrimônio era uma cama, um fogão e minhas roupas. Voltei à realidade e pedi a Deus pelas famílias que moravam “no baixo”, porque Manguinhos um dia foi mangue, antes de ser aterrado. A vizinha começou a gritar por socorro, por dois cachorros que estavam presos e a água já passava de um metro de altura. O barulho fez o dono da casa acordar e tirá-los da corda e podia-se ouvir o ecoar de gritos de “enchente” para despertar os moradores que dormiam e não fossem pegos de surpresa.
O nível da água continuava a subir. Houve quem brincasse na chuva , mas o comum era ver os baldes retirando água no intuito de diminuir o prejuízo provocado. O tumulto demonstrava que as pessoas lutavam pra não ter todos os pertences destruídos. A luz começou a piscar, mas, por sorte ou injustiça, meu barraco foi um dos poucos que não faltou luz. Nessa hora, percebi que a dor e a solidariedade eram democráticas, pois um misto de ansiedade, frustração e medo tomaram conta de mim. A chuva cessou pra alegria dos moradores. “Enquanto uns morrem sofrendo com a seca, a chuva, aqui, provocou um desastre irreparável”, pensei.
Só consegui dormir depois das três da manhã. No dia seguinte, foi doloroso caminhar pela favela e ver colchões, televisores, roupas, sofás, tudo, tudo jogado no lixo. A altura da água cobriu alguns carros. O caminhão de lixo estava pelo local, onde os garis comunitários e a Comlurb mobilizavam-se no trabalho de recolhimento dos destroços. Quem não tinha quase nada, perdeu tudo. Quem não tinha nada, tentava aproveitar o que foi jogado no lixo. Nessa hora, é possível perceber que o ruim pra um é bom pro outro. Coletivos reuniam doações e deixei a minha, porque já me vi na mesma situação. A empatia e o gesto solidário gritavam: “É nós por nós”, porque nem os oportunistas apareceram.
A tragédia nos une. Moradores com mangueiras lavavam a lama e procuravam descobrir o que foi perdido na enchente. Em diversos bairros a chuva deixou seus estragos, ventos fortes derrubaram mais de vinte árvores – essas foram só as que vi e contei. Pensei na ganância dos que omitiam ajuda e naqueles que ajudavam ao próximo. O sofrimento alimenta nossa coragem, porque encontramos força pra recomeçar e conquistar aquilo que nos foi tirado…