Legado e liderança de mulheres indígenas

Krahô, Tocantins / Crédito: Julia Lea de Toledo

Abril foi o mês indígena. Este artigo relata a conferência “Liderança de Mulheres Indígenas”, em Salvador, e explora a jornada pessoal e comunitária das mulheres indígenas pelas gerações.

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Krahô, Tocantins / Créditos: Julia Lea de Toledo

A liderança de mulheres indígenas

Os povos indígenas são frequentemente vistos como “protetores da floresta” quando levantam um espelho para a civilização ocidental, revelando como o capitalismo e a industrialização resultaram um aquecimento global. Mas se olharmos além de nós mesmos, veremos que a sobrevivência e o bem-estar deste povo já estavam seriamente ameaçadas muito antes de ficar claro para nós que a nossa existência também está. A caça e a pesca predatórias tornam a terra escassa, o que é insustentável para nós e devastador para eles e elas. Essa devastação ambiental e cultural levou as mulheres indígenas a lutarem para recuperar a terra e não apenas o direito de usar o que resta dos recursos depois que o governo privatiza e indústrias extraem. E elas lutam a qualquer custo.

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Nádia Akauá Tupinanbá, Flávia Guarani Kaiowá, Rosimere Arapasso. (UFBA)

Está claro, como sempre esteve – após o golpe e a prisão de Lula, tentativas de privatizar a maior companhia de eletricidade da América Latina e, consequentemente, o rio Sāo Francisco – , que o governo não é um aliado. “Políticos não nos representam”, conta Nádia Akauá Tupinambá.

Não podemos acreditar no governo e no exército, porque é claro que “o que eles dizem que vão fazer para ajudar não acontece, estão apenas atrás de votos”, conta uma nativa que não quis ser identificada. Muitos políticos só aparecem para coletar informações, e até mesmo membros da família às vezes entregam nativos (intencionalmente ou não).

A luta pelo território não precisa do governo. A autodemarcação da terra mostra a força política do movimento e a força espiritual do povo.

“Se você não se sente capaz de falar sobre si mesmo, como pode falar pelo outro? Se não falarmos, não seremos ouvidas. O abuso da mulher precisa ser falado pela mulher! Caso contrário, não haverá nenhuma mudança. É por isso que assumimos a responsabilidade da militância, sem fins de semana ou feriados”, diz Rosimere Arapasso.

Maridos também não podem representar suas esposas. Elas devem representar a si mesmas, porque se não falam, não são ouvidas. Existe poder na denúncia. Sem isso, não há direitos. Por outro lado, com a denúncia vem a perseguição. Sair da invisibilidade significa todo um novo conjunto de ameaças. “Os brancos querem continuar enriquecendo, então nos matam”, disse a nativa que não quis se identificar.  É por isso que massacres acontecem com impunidade. Se os policiais ou militares não “removem” as aldeias de terras, os proprietários se sentem no direito de “remover a bala”. E se não matam, queimam as casas e as coisas.

“Liderar requer coragem, porque somos caçadas como animais”, conta Flávia Guarani Kaiowá.

O território Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, abriga a população que recentemente sofreu horríveis atos de violência. Flávia, uma líder indígena de 21 anos, testemunhou extrema brutalidade policial. A polícia invadiu sua comunidade, onde mora com seu filho de 6 anos, atirando, deixando muitos feridos e um morto (Caarapó, 2016). Ela diz, com lágrimas nos olhos, que seu filho não tem mais medo de armas, e que por gerações, nativos crescem com medo sem saber que sofrem opressão.

“Eu tive que superar o medo da morte, e agora estou preparada para morrer, porque sei que vou morrer fazendo algo que vale a pena”, conta Rosimere.

O trauma transgeracional, junto com a violência contemporânea, resulta em complexos obstáculos existenciais. Entre os jovens nativos, em particular, a desmoralização leva a altas taxas de suicídio. Alguns programas do governo mandam psicólogos às comunidades, mas, segundo Nádia Akauá, isso não é a solução. Eles não ajudam os nativos e as nativas porque não têm espiritualidade, e para eles e elas a oração é a arma mais forte contra a desmoralização. Muitos participam do programa porque é dinheiro fácil e brancos têm uma curiosidade pelo “exótico”. Esses psicólogos vêm da academia, não falando a língua da comunidade literalmente, culturalmente ou espiritualmente.

“A comunidade tem que decidir quem entra e quem não entra na comunidade. Não um programa qualquer do governo”, diz Nádia.

A esperança vem através da oração, e é por isso que a espiritualidade é uma força motriz do movimento de resistência indígena. Ser capaz de se chamar indígena e praticar rituais é uma vitória em si. É importante preservar e vocalizar a identidade indígena, especialmente depois de ser duramente impedidos de fazê-lo no passado. “Se a gente falasse que era indígena, morria” (A Cacique Abaeté). Durante a ditadura nos anos 60, havia campos de concentração para nativos. Hoje, se afirmar como indígena ainda pode ser uma sentença de morte. Então, em muitos aspectos, essa luta é simplesmente pelo direito de existir.

O legado das mulheres indígenas

Quando o Brasil foi invadido (não “descoberto”), praticamente não havia mulheres europeias, então a grande maioria da população brasileira veio a ser da miscigenação violenta entre homens brancos e mulheres de cor. O fato de nossas ancestrais terem sido violentadas é algo que nos afeta hoje em dia, e é um trauma transmitido a nós. Há pouquíssima história registrada dessas mulheres indígenas; por centenas de anos elas não tiveram voz. Tudo o que ouvimos e reproduzimos é a memória dos homens europeus brancos que as violaram. Então, não tivemos chance de sarar.

Não permitir os povos indígenas de falar por si mesmos tem sido uma maneira bem-sucedida e desprezível de incutir na sociedade a ideologia da supremacia branca, contra a qual ainda estamos lutando hoje. Por exemplo, apenas no ano passado, o Rijksmuseum de Amsterdã exibiu obras de um artista colonial holandês chamado Frans Post. Ele continuou a pintar paisagens brasileiras bem depois de sua visita ao Brasil (em meados do século 17), porque “vendiam muito bem” – enquanto “nem um único estudo de animal ou planta de sua mão é conhecido”. Em outras palavras, ele estava pintando fantasias, e ele não é o único artista holandês em museus de hoje que fez isso.

“As pinturas de (Albert) Eckhout foram apresentadas, na época, como “curiosidades”, mas acabariam influenciando, não a um pequeno grau, o olhar etnológico e as perspectivas antropológicas em relação aos povos indígenas do Brasil até os dias atuais”, diz Adone Agnolin.

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Na figura acima, à esquerda, está uma indígena com partes de um corpo picado e animais selvagens perigosos, que pretende representar a selvageria dos povos indígenas na região brasileira ocupada pelos holandeses. Não é assim que os nativos praticavam a antropofagia. À direita, temos um homem mestiço “domesticado” com roupas de estilo europeu e arma de fogo. O olhar branco europeu distorcido, apesar de ainda ser amplamente considerado objetivo, por centenas de anos deturpou a cultura e as tradições dos povos Indígenas, violentamente silenciando as pessoas que supostamente representavam.

Esses são exemplos do capitalismo brotando do colonialismo patriarcal, formando a simbiose entre a supremacia branca, o sexismo e o mercado “livre” em que vivemos hoje.

Uma maneira de manter vivo o legado de ancestrais nativos é resgatar a memória das mães, avós, bisavós e trisavós. Ouvir, aprender, praticar e compartilhar mantém a identidade viva. A identidade indígena é preservada através da prática e da tradição, não só através do DNA. As autoridades governamentais, no entanto, muitas vezes usam o DNA como uma tática para desacreditar líderes indígenas, minar seus movimentos, transformar os povos indígenas uns contra os outros e reverter a lei a seu favor.

Flávia Guarani Kaiowá, por exemplo, teve sua descendência negra usada como uma ameaça contra ela por várias figuras de autoridade. Isso nem chega perto de interferir em seu compromisso com o movimento da resistência indígena e com sua relação na criação, ancestrais e tradições. Se alguma coisa lhe acontecer, o mundo inteiro falará seu nome e sua voz não será silenciada como as das mulheres que vieram antes dela.

“Minha avó costumava me dizer: ‘Essa terra não é nossa, fomos forçadas a escolher entre vir aqui e morrer'”, diz Flávia.

Mulheres indígenas foram retiradas à força de suas terras e transferidas para os campos. Foram colocadas para trabalhar como empregadas domésticas nas casas de oficiais militares e líderes cristãos até por volta dos 30 anos de idade. Quando envelheciam, e não eram mais consideradas valiosas como mão-de-obra barata, ficavam sem moradia ou emprego e enfrentavam discriminação até mesmo quando voltavam pra suas próprias tribos. Quando brasileiros marginalizam mulheres indígenas, isso também significa marginalizar uma parte significante de nós mesmos.

As famílias brasileiras tendem a não valorizar sua ancestralidade indígena, há tanto colorismo que dificulta a busca à nossas raízes e a preservação de nossa identidade. Eu, pessoalmente, decidi resgatar a memória da minha ancestral pela investigação histórica e pela ritualização da minha vida. Isso não significa que eu vou morar em uma terra indígena e começar a me pintar. Significa que pratico rituais diários que me conectam com minha ancestralidade, ouvindo, aprendendo e me curando de maneiras que não são possíveis através da medicina e das terapias ocidentais. Todos e todas nós nos beneficiaremos da descolonização e da destruição da supremacia branca no mundo.