Vivemos num momento de recrudescimento democrático no Brasil. Esse período se caracteriza pelas ameaças e tentativas de intimidação (e em muitos casos, assassinatos efetivamente realizados) cometidas contra aqueles que ousam denunciar violações de direitos humanos e outras tantas arbitrariedades comandadas por uma simbiose perversa entre os interesses corporativos e agentes públicos. Tal conjuntura é facilmente observável (embora muitos queiram encobri-la) pelos inúmeros assassinatos cometidos este ano no norte do país devido aos conflitos agrário-ecolológicos e por dezenas de militantes que tiveram que abandonar seus lares e estados de origem. Não bastasse esse fato, extremamente grave, milhares de pessoas (isso mesmo, milhares) encontram-se ameaçadas em todo o país. E isso, apesar de não ser largamente noticiado, vale, inclusive e especialmente, para as grandes metrópoles, povoadas por grupos de extermínio e pela lógica belicista das políticas de segurança pública.
Desde o final do mês de agosto, militantes da Rede contra Violência vêm sofrendo uma série de ameaças provenientes de policiais. Como muitos já sabem, nosso trabalho consiste em lutar por justiça e denunciar casos de violência policial. Esta apresenta diversas facetas, oferecendo nos últimos anos uma das principais variações em seus repertórios através das Unidades de Polícia Pacificadora. O falso consenso que se construiu em torno desta ação (o outro lado da tradicional política do confronto) não nos impediu de denunciar as inúmeras arbitrariedades que vêm sendo cometidas também por policiais de UPPs. Não nos calamos antes diante de ameaças e não nos calaremos agora. Vamos aos fatos.
A primeira destas ameaças ocorreu no dia 22 de agosto, por volta das 19hs, enquanto ocorria a nossa reunião semanal. Neste instante, o telefone toca. Uma de nossas militantes o atende. Do outro lado da linha um homem, que não se identificou, perguntou se era da Rede e que gostaria de falar com um dos integrantes, apontando o nome. A militante que atendeu a ligação afirmou que era ela mesma. O homem, então, disse: “aqui é o policial que você derrubou. Você me derrubou agora vou te derrubar” e desligou em seguida.
No dia 24 do mesmo mês, por volta das 9hs, o telefone de nossa sede toca novamente. Uma militante atende e reconhece a voz, que era a do mesmo homem que havia ligado no dia 22. Ele realizaria mais uma ameaça: “você está sempre pronta para derrubar um policial. A sua hora esta chegando”. A nossa militante respondeu prontamente: “eu pelo menos tenho um rosto e uma imagem. Você é um covarde que nem isso tem”, e o referido homem desligou imediatamente.
No dia seguinte, por volta das 12h, outra militante atende uma ligação. Um homem, que também não se identificou, pergunta se é o número da Rede e diz que gostaria de fazer uma denúncia. Perguntou o nome da militante em questão, que não respondeu, e também o que a Rede fazia. Disse que a voz dela era bonita, e a militante perguntou se ele estava ligando para cantá-la e logo em seguida desligou. Logo na sequência, houve diversas ligações, mas a pessoa, quando era questionada sobre quem estava falando, nada dizia.
No início da madrugada de 30 de agosto, na saída do Instituto Medico Legal, após acompanhar jovens agredidos e presos irregularmente por policiais da UPP do Morro da Coroa, militantes da Rede e familiares destes jovens foram abordados por policias militares de forma violenta, sendo que um dos PMs que estavam numa viatura empunhou seu fuzil na direção dos mesmos tentando intimidá-los.
Já no dia 1° de setembro, um dos exemplos principais da perseguição e das ameaças que estamos sofrendo nas últimas semanas. Novamente através de um telefonema, por volta das 10hs, um homem, mais uma vez sem se identificar, descreveu uma situação ocorrida na noite anterior, quando alguns militantes da Rede estavam indo embora. Ele fez questão de mostrar que os conhecia, relatando-os fisicamente e o que estavam vestindo no dia anterior, além de apontar os gestos que teriam feito antes de se despedirem uns dos outros. Não bastasse isso, o referido homem afirmou à militante que o atendeu: “se eu matar você, meus problemas terminam”.
Além disso, no dia 2 de setembro, quando alguns militantes estavam indo embora, por volta das 22h50min, eles foram abordados por policiais militares que estavam diante de uma cabine na Avenida Almirante Barroso. Um desses PMs, demonstrando que os conhecia, cumprimentou duas militantes presentes, perguntando: “como estão as senhoras?”. Na segunda-feira seguinte, dia 5, mais uma tentativa de intimidação. O telefone de nossa sede toca. Um homem, que seria rapidamente identificado pela militante que o atendeu como sendo o mesmo policial militar que a havia abordado no dia 2, descreve aquela situação e a questiona sobre o porquê ela não o cumprimentou naquele momento. A militante perguntou o que ele queria e o PM respondeu: “se não pode comigo, junte-se a mim” e desligou o telefone.
Gostaríamos de deixar claro que repudiamos veementemente tal investida contra nossos militantes. É inadmissível que situações como essas se reproduzam com tanta frequência. Elas apenas demonstram o discurso falacioso de que vivemos num país em que todos têm o igual direito de falar. Na verdade, uns são mais iguais que outros. O que estes acontecimentos relatados acima demonstram é justamente o inverso: aqueles que não se calaram contra as injustiças e que denunciam publicamente as arbitrariedades cometidas por agentes públicos, especialmente policiais, estão sendo impedidos de fazê-lo. Não aceitamos isso e exigimos que as autoridades públicas constituídas garantam um direito constitucional básico: a liberdade de expressão. Se os que estão fazendo estas ameaças acham que vão nos calar, cometeram um grande erro: continuaremos mostrando ao mundo o que se passa nos bastidores da “cidade maravilhosa e pacificada”.
Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência