Era um domingo a noite, 30 de outubro de 2017, e os moradores participavam de uma festa de comemoração do dia das crianças organizada por comerciantes da rua Euclides da Rocha, quando foram surpreendidos pela entrada do blindado do BOPE, o caveirão, para uma suposta operação policial no local. A partir de então, o que era pra ser uma noite de festa acabou se transformando numa das noites de maior terror vividas pelo Tabajaras.
Além de deixar marcas nos corpos e na memória de quem estava presente, o episódio deixou uma sobrevivente. Na noite da festa, a jovem de 21 anos estava com amigos em casa e desceu pra comprar pizza na rua. Ficou sentada a alguns metros do local da festa, conversando com amigos na escadaria da sua casa e esperando a pizza ficar pronta. Ao ouvir os tiros e a entrada do caveirão, levantou e virou de costas pra tentar fugir na direção das escadas, quando foi atingida por um tiro de fuzil.
“Eu caí na escadaria e botei a mão na barriga. Como eu estava de vestido começou a pingar muito sangue. Eu botei a mão na barriga e falei ‘eu levei um tiro’, e a minha amiga que tava na minha frente falou ‘eu levei também’. “
A mesma bala que a atingiu ficou alojada próximo ao fêmur da amiga, que estava na sua frente. Uma vizinha colocou as duas pra dentro da sua casa e elas esperaram cerca de trinta minutos nessa situação até que os tiros acalmassem. Quando finalmente o seu então namorado conseguiu coloca-las dentro de um carro para leva-las para o hospital, foram parados no caminho, no container da UPP, e impedidos de passar. Depois de insistir e explicar que havia duas vítimas baleadas no carro, um policial que estava dentro do container saiu e mandou que liberassem a passagem.
Ao chegar no hospital Miguel Couto foi perdendo a consciência, e quando acordou ainda não sabia exatamente o que tinha acontecido.
“Eu achava que ia sair dali no dia seguinte. Foi quando o médico falou pra mim que não tinha previsão de quando eu ia sair porque tinha sido muito sério”.
Precisou fazer uma cirurgia para reconstruir a bexiga, que foi dilacerada. Dois dias depois, ao fazer a limpeza do ferimento da barriga, o médico a manda imediatamente para a sala de cirurgia mais uma vez, ao identificar a saída de fezes pelo ferimento. Ao retornar da cirurgia no intestino já usava uma bolsa de colostomia.
“Eles me explicaram que furou meu intestino e que tiveram que tirar cinco centímetros dele. E que eu teria que ficar usando uma bolsinha de colostomia por um tempo. Eu perguntei se era pra sempre e ele falou que não, que era de quatro a seis meses.”
Mesmo tendo feito a cirurgia, a quantidade de fezes que saíra pelo ferimento causou uma infecção grave. Depois de muitos dias sem conseguir se alimentar e com a perna inchando cada vez mais por conta dessa infecção, o médico pediu autorização pra que fizesse uma abertura na sua perna na tentativa de que a secreção pudesse sair. Após mais uma cirurgia, seu corpo finalmente começou a reagir aos medicamentos. Um mês e meio depois de ter sido internada e com vinte e dois quilos a menos, recebeu alta e foi pra casa com a bolsa de colostomia e uma sonda urinária.
Devido a dor forte que vinha sentindo pra urinar, chegando a desmaiar no banheiro, foi mais uma vez a emergência do hospital Miguel Couto, onde os médicos não encontraram nada que pudesse justificar a dor.
“Ela chorava de dor e já não queria mais beber água. O médico falava que ela tinha que beber muita água e ela não queria porque quando dava vontade de urinar ela chorava”, conta a mãe.
Depois de uma consulta de emergência e três consultas de rotina, todas elas com a queixa de dor muito forte e com a resposta do médico de que a dor era normal, já que a sonda urinária incomoda, a mãe a leva a emergência mais uma vez.
“Naquele dia eu fui diretamente no diretor chorando porque não aguentava mais ver a minha filha daquele jeito. Ele pediu pro médico examinar e ali eles descobriram que o problema dela era que a sonda estava entupida a dois meses. Ela foi a quatro consultas e ninguém viu isso.”
A nova infecção dificultou a recuperação da bexiga e só foi tratada com um remédio muito caro e também muito forte, que fez com que seu cabelo todo caísse.
Ela conta que três meses antes do tiro tinha arrumado seu primeiro emprego, além de estar estudando depois de, com muito esforço, conseguir uma bolsa no colégio Santo Inácio. Sua mãe teve que sair do emprego pra cuidar da filha e vive hoje do seguro desemprego que termina em novembro desse ano.
“Até hoje ninguém nunca me procurou pra saber se a minha filha sobreviveu, se ela morreu. Ou seja, o B.O. que eu fiz serve de que afinal?”
Hoje, quase um ano depois, mãe e filha arcam com os custos de curativos e remédios, e não tem previsão de quando vão conseguir realizar os procedimentos que ainda precisam ser feitos pra tentar ter uma vida normal de novo.
“Antes eu trabalhava, eu estudava. Não dependia de ninguém pra nada. Hoje em dia eu preciso sair sempre acompanhada, eu gasto um dinheiro que eu não tenho com medicamento, com esparadrapo, curativo. Antigamente eu ia no médico pra fazer exame de rotina, hoje em dia eu praticamente vivo no médico”.
Das vítimas, a única a receber intimação para depor foi a amiga que também foi atingida e tem a bala alojada no corpo. Em ofício, a defensoria pública solicitou a 12 DP que informe se houve operação policial na comunidade naquela noite.