No alto do morro dos Cabritos foi plantada uma semente, que em muito pouco tempo já mostra seus frutos. Essa semente é o projeto Morro de Amor, que vai completar um ano de vida e foi idealizado por Edson Batista, morador do Tabajaras e Cabritos que dá aulas de ukulele para crianças da região, duas vezes por semana. Edson é músico e trabalha como adestrador de cachorros, e sonhava em poder por em prática a ideia do projeto – de compartilhar com as crianças todos os benefícios que a música pode trazer e que trouxe na sua própria vida. Chegou a pensar em desistir, tendo em vista as dificuldades que enfrentaria, mas foi incentivado pelo amigo e hoje parceiro do projeto Aridelson Ferreira a resistir com a ideia.
Convencido da importância de, antes de qualquer coisa, despertar nas crianças o interesse pela música, tirou dinheiro das próprias economias para alugar duas horas no estúdio Eco Som, convidou amigos músicos para tocar e levou um grupo de crianças para experimentarem um pouco desse universo.
“Uma coisa que é muito importante é você ter acesso. Muitos com vinte anos morrem sem nunca ter ido a um teatro, sem conhecer essas coisas.”
Depois de vivenciarem um mundo que até então não conheciam – passear pelo palco, pelos camarins, interagir com os instrumentos de perto e assistir à apresentação dos músicos – ingressaram nas aulas sabendo que poderiam um dia trocar de lugar e não estar mais na platéia, mas sim no palco. Desde então o grupo de oito crianças se reúne com Edson em uma casa para estudarem música juntos. Ele conta que, ao ser apresentado ao ukulele, viu no instrumento potencial para ser o instrumento base do projeto por permitir que se comece a produzir som sem tanto esforço, facilitando o ingresso do aluno. Segundo ele, as crianças são parceiras de estudo, já que ele ainda não domina o ukulele e está sempre estudando para poder ensinar.
Sem ter como objetivo formar músicos, as aulas dão conta de trabalhar diversos aspectos da vida das crianças; desenvolvem habilidades novas ao mesmo tempo em que despertam a sensibilidade.
“Dentro da musica você estuda matemática, porque você tem fórmulas de compasso, você estuda historia porque sempre que se vai falar sobre um artista do passado – tipo Luiz Gonzaga que é base dentro do projeto – é história. História, matemática, língua portuguesa e poesia tudo dentro de uma parada só. (…)
Toda vez que a gente conclui o ensaio de uma música e fica bom realmente eu me emociono, já me dou por satisfeito por aquilo. Não precisaria nem levar o bloco pra rua. Quando eu vejo o brilho no olho da criança e vejo que ela entendeu a melodia, que ela pegou o tempo da música e começa até a brincar ali dentro – coreografar, mexer com o pé, fazer alguma firula – pra mim o trabalho já está pronto.”
Apoio
Edson enxergou na própria profissão de adestrador uma oportunidade de conseguir apoio e resolveu falar do Morro de Amor para os seus clientes. Uma das clientes, Paula Leal, chegou a fazer uma doação de instrumentos – entre eles nove ukuleles – e é hoje madrinha do projeto. Os instrumentos ficam na casa alugada para as aulas e o aluno que passar no teste de tocar a melodia e harmonia de seis músicas do repertório, ganha o direito de levar um deles para casa.
Outro apoiador é Antonio Oliveira, que constrói instrumentos musicais na sua casa e oficina dentro do Tabajaras. É junto com ele que Edson pretende por em prática uma das outras idéias que tem para agregar ao projeto e dar oportunidade para que as crianças se envolvam com a música como um todo. A ideia consiste em uma oficina de construção de instrumentos da qual as mães também fariam parte junto com seus filhos.
Além deles, Deyse Rodrigues – mãe de um dos alunos, Vitor Hugo – e a esposa de Edson, Ariani Ferreira, estão sempre presentes e envolvidas nas atividades do projeto.
Festival no Leme
Três das crianças, que são as mais assíduas, já se destacam mostrando um talento que pode ser desenvolvido hoje graças às aulas no Morro de Amor. Elas são Ana Alice, Maria Eduarda e Vitor Hugo, que sentiram pela primeira vez esse ano o gosto de estar no palco. Foi na edição de dia das crianças do Tô na rua, no Leme, que apresentaram seu repertório para o público nos dois dias de evento e foram aplaudidos.
Deyse conta que antes de começar as aulas de música, Vitor Hugo tinha sido diagnosticado com déficit de atenção e frequentava consultas com um psicólogo e um neurologista, mas não mostrava evolução.
“Ele não evoluía, continuava uma criança fechada com dificuldade pra tudo. Depois que ele começou a fazer as aulas de música ele conseguiu ficar mais comunicativo, conseguiu interagir mais, se comunicar mais. Ele mudou totalmente, não só na escola. Começou a descobrir coisas que ele achava que não era possível ele fazer. É muito gratificante ver o quanto a música transformou a vida do meu filho, abriu os horizontes dele.”
A fala da mãe é confirmada pelo próprio Vitor Hugo. Ele conta que depois que se apresentou no show de talentos da escola as outras crianças começaram a trata-lo diferente, e explica como se sente quando está tocando:
“Eu me imagino assim ó: to leve, to voando. Só que a pessoa tá ali embaixo olhando, e eu to aqui em cima tocando. É tipo como se eu estivesse liberando as coisas que me magoam. Eu me sinto mais leve.”
Depois da apresentação no Leme, os três contaram um pouco sobre como se sentem se apresentando para outras pessoas de cima do palco, e da diferença nas suas vidas antes e depois de começarem a frequentar o projeto. Maria Eduarda diz superar cada vez mais seu nervosismo, que hoje só sente logo no começo da aula ou da apresentação. Já Ana Alice, filha de Edson, apesar de já ter contato com instrumentos musicais antes, conta que agora é mais prazeroso tocar porque toca junto com os amigos. Mas é unanimidade entre os seus relatos a sensação de felicidade de estar em cima do palco, e de sentirem hoje que são importantes e podem fazer algo diferente do que imaginavam no futuro.
Resistência
O projeto atravessa diversas dificuldades, não só as financeiras, para garantir que as crianças tenham acesso ao seu direito de ter qualidade de vida.
Edson conta que, até que pudessem ter uma casa como sede, as aulas aconteciam em uma laje, e tiveram que ser suspensas por quase três meses devido ao mau tempo. A festa de dia das crianças desse ano também foi interrompida por um intenso tiroteio na parte alta do morro, como mostra o vídeo publicado na sua página do facebook.
Apesar disso tudo, o Morro de Amor mantém a resistência no sentido original da palavra. É trabalho feito em conjunto, que nada contra a corrente e é cercado de afeto. O impacto sobre a vida das crianças é visível, seja no rendimento escolar, ou fortalecendo a autoestima e permitindo que descubram novos contextos, novas referências, e consequentemente novas possibilidades.