A luta pode não ser de todos, mas as conquistas são

Desde os meus primeiros períodos na faculdade de Jornalismo, todas as vezes que vejo postagens de negros se formando nas universidades em minhas redes sociais, não só curto, mas também me encho de orgulho e me dá muito mais forças para continuar e  não desistir da minha luta e do meu sonho de me formar Jornalista. Pois foi essa profissão que escolhi quando tinha apenas dez anos de idade, ao assistir uma reportagem no telejornal, em que um grupo de repórteres ajudavam a salvar crianças soterradas sob os escombros de uma escola que foi bombardeada, não me lembro em qual país, mas sei que foi no período da terrível guerra do Irã contra o Iraque. Aqueles homens e mulheres foram condecorados e chamados de heróis pelo mundo inteiro. Aquela cena me fez parar em frente a tv e a partir daquele dia, sonha com meu diploma de Jornalista.

Naquela época, por eu ser ainda muito criança e não ter muito conhecimento, eu dizia aos meus pais e as outras pessoas, que quando crescesse seria repórter, pois não imaginava que além de exercer essa função, exerceria várias outras dentro da profissão. Foram anos e anos sonhando, imaginando como seria o dia que eu conseguisse entrar para a universidade, pois muitos me diziam que seria impossível, porque faculdade era coisa para filhos de bacana, filhos de rico e que meus pais não deixariam de dar de comer a mim e aos meus irmãos para bancar meus estudos, pois os livros eram muito caros. Às vezes riam e me falavam que eu tinha que pensar querer trabalhar e fazer um curso de cabeleireira ou de manicure, assim como fez minha mãe. Ou então, fazer um curso de enfermeira auxiliar, que era uma das poucas coisas que dava para pretos e pobres fazerem, era o que alguns me diziam. Estavam sempre me desmotivando, me pondo para baixo, pois naquela época, anos 1980, final do regime militar, não era muito comum ver negros nas universidades estudando, mas sim, faxinando ou fazendo qualquer outro serviço considerado inferior.

Terminei o ensino médio, prestei alguns vestibulares para faculdades particulares, passei em uns, mas infelizmente não tinha o dinheiro para matrícula, quiçá, para arcar com as mensalidades que eram muito além de meu orçamento. Tentei Crédito Educativo, o famoso (CREDUC) da Caixa Econômica Federal, mas era outra coisa praticamente fora de cogitação, pois quem iria querer ser fiador de alguém e teriam que ser quatro pessoas,  morando na favela, como iria conseguir os documentos de registro da casa da minha mãe? Tudo era muito difícil e complicado, quase impossível, pois até os ótimos pontos na redação do ENEM que eu havia conquistado, só me davam o direito somar aos outros nos vestibulares das universidades públicas, pois como era o primeiro a ser aplicado no país, o exame só era para avaliar o ensino médio, não era obrigatório, sem o propósito que tem hoje e como não estudei em escola particular e não pude pagar um bom cursinho, aí já viu né? O sonho de terminar os estudos e me formar estava se tornando cada vez mais distante e o pior, um pesadelo, pois o caminho até a faculdade era longo, cheio de pedras e barreiras enormes e com muitos espinhos.

Os anos iam se passando e eu continuava com meu sonho e sabia que uma hora iria acontecer, e continuava trabalhando como sempre fiz desde menina, quase sempre em trabalhos que a elite e a sociedade em geral não reconhecem e inferiorizam, como doméstica, operadora de caixa de supermercado, camelô, vendedora de água no sinal e de praia e por aí vai. Quando conseguia algo um pouco melhor, como recepcionista ou auxiliar administrativo, pois eu fiz cursos para tais profissões, sempre tinha no trabalho aquela pessoa que estava em uma hierarquia um pouco acima para dar aquela puxada de tapete, concorrência, sabe como, gente preta não pode se destacar muito que incomoda. Mas nada me fazia desistir de correr atrás do que eu queria realmente, que era e é ser uma Jornalista. Eu sabia que uma hora ou outra eu iria conseguir, não me importava qual seria minha idade, se estaria velha ou não para entrar na faculdade.

Mas, a esperança realmente é a última a morrer, ou melhor, nunca morre, pois depois de várias e várias tentativas frustradas para entrar na faculdade, eis que aos quarenta anos de idade, já com filhos crescidos e com um neto já nascido,  consegui realizar parte do meu sonho. O Governo da Presidenta Dilma estava dando continuidade as reformulações dos programas sociais para ensino superior, os mesmos já estavam sendo reformulados no Governo do Presidente Lula e aquela estava sendo a minha chance e agarrei com unhas e dentes quando soube que próximo onde eu trabalhava, iria começar a funcionar uma instituição de ensino superior e eles estavam fazendo matrículas através do Financiamento Estudantil (FIES). Fiquei um pouco com pé atrás e a pulga atrás da orelha, confesso, pois no início esse sistema teria que ter um fiador e eu sabia disso por já ter tentado antes entrar na faculdade através dele. Mas tal qual foi minha surpresa, quando fui até a instituição de ensino e me informaram que na nova reformulação do Governo não precisaria mais de ter fiador, comprovar que a residência tinha registro em cartório. Fiquei aliviada e me sentindo orgulhosa, não estava acreditando que eu iria voltar a estudar, começaria cursar o tão sonhada faculdade de Jornalismo, minha felicidade não cabia dentro de mim.

Me matriculei e iniciei a faculdade no curso de Administração, pois não havia o Curso de Jornalismo naquele campus e como eu já havia feito alguns cursos e estava trabalhando em uma empresa com algumas funções de auxiliar administrativo, aproveitei a oportunidade que estava tendo. Decidi desta forma, mas pensando em terminar esse curso e fazer o de Jornalismo. Mas, sabe como é, quando a gente quer algo, sonha com ele e sente que nasceu para aquilo, não tem jeito mesmo, larguei a faculdade onde eu cursava Administração e que diga-se de passagem, não tinha nada a ver comigo e me transferi para uma outra onde havia o curso que sempre sonhei. Assim, me senti e me sinto realizada cursando aquilo que eu sempre quis fazer desde criança. E tudo isso, graças as reformulações que os Governos Lula e Dilma fizeram nos programas sociais destinados ao ensino superior  e estavam me dando aquela oportunidade, não só a mim, mas também a outras pessoas negras, pobres e moradoras de favelas, que assim como eu, não podem arcar com as mensalidades de uma faculdade particular. Fui criticada por alguns, pois me diziam que era loucura e como iria pagar depois, mas eu sempre os rebati dizendo que essa era a única oportunidade que estava tendo de entrar numa universidade, então iria pegar, pois sabia do grande esforço que fazia a anos, durante governos passados para conseguir alcançar meu objetivo.

Não tenho partido político nenhum, mas reconheço perfeitamente que se eu tive a chance de poder cursar o nível superior, foi durante os dois últimos governos anteriores a esse que está aí. Assim também como reconheço, que se houve algumas melhorias, foi nesse período, e por ter nascido na época do regime militar e quando ele acabou eu já era quase uma adolescente, então, acho que posso falar um pouco das melhorias que tivemos e fazer algumas comparações. Sei que ainda há muito a ser feito, mas, as pessoas pobres tiveram algumas conquistas bastante significativas, e falo isso por ter vivido outros governos civis após o fim do militarismo desde o primeiro, e apesar de ser bem nova na época, por ser pobre já tinha responsabilidades de gente adulta.

Bem, isso é só um resumo da minha trajetória rumo a universidade, de como eu consegui entrar para cursar Jornalismo. E durante esse tempo na faculdade, conheci muitas pessoas e algumas com histórias iguais ou parecidas com a minha, gente que também só conseguiu entrar na universidade depois de uma certa idade, quase sempre com o mesmo perfil que o meu. E como estou cursando em uma instituição privada, conheci também pessoas que não precisam e nunca precisaram “ralar” tanto para cursar uma faculdade, que não passam por dificuldades para manterem seus estudos e muito menos se preocuparem com os boletos das mensalidades.

E foi chegando até aqui que tive uma maior percepção do quanto as políticas sociais públicas são tão importantes para nossa sociedade, principalmente na área da educação, que é tão elitista e separatista, pois ainda, a maior parte dos universitários são em sua grande maioria de pessoas brancas e das classes médias “B” e “A”. Entendi, compreendi e aprendi muito o quanto a política de cotas é importantes e muito necessárias, pois quando foram criadas, eu ainda cursava o ensino médio e as palestras que assisti na escola sobre o assunto eram com informações vagas, sem muito aprofundamento. Praticamente nos diziam que bastava ser negro para conseguir uma vaga na universidade, que era uma ajuda em forma de esmola que o governo estava nos dando para conseguirmos ter um diploma, era o termo que usavam para se referirem as cotas. Aí já viu né, muitos não queriam entrar na faculdade desta forma, e confesso, inclusive eu cheguei a me recusar também por não ter tido na época informações que me esclarecessem sobre o assunto. Havia quem acreditasse que não era necessário nem prestar o temido vestibular, que era só escolher uma instituição e se inscrever. A falta de informação era muito grande, o e assunto era tratado na mídia de forma muito negativa e distorcida.

Mas, mesmo assim, me sentia muito incomodada em saber que por eu ser negra, pobre e favelada, não poderia realizar meu sonho e ter que passar a vida sendo aquilo que eles determinaram pra mim, continuar trabalhando em subempregos, como o de doméstica, por exemplo. Não que seja um trabalho indigno, mas sempre achei que independente das origens, todos têm o direito de querer algo melhor para si próprio, ter uma vida digna e justa. E eu não aceitava mesmo aquela situação, pois se eu já estudava tanto, porque estava sendo tão difícil entrar para faculdade? Não queria e nunca quis aceitar que a cor da minha pele e minhas origens eram também um pré-requisito para eu continuar estudando, para ter uma formação acadêmica. E devido alguns a alguns acontecimentos e após entrar para faculdade que obtive mais conhecimento e que percebi que eles usaram a tática da má informação para continuarem nos mantendo longe das universidades e nas posições de submissão e subserviência. Foi a partir do Governo Lula que passamos a ter um pouco mais de informação, com mais pessoas nos órgãos de comunicação falando a respeito e uma maior ampliação das cotas nas universidades públicas. Mas mesmo assim o número de negros ainda é muito baixo em todas as graduações, e pelo andar da carruagem, agora corremos o risco de diminuir ainda mais ou pior, de ser extinto, pois a elite, que se incomodou e se incomoda tanto em dividir espaços conosco, conseguiu eleger seu representante, que já deu diversas declarações se dizendo contra essa e outras nossas conquistas. Ele sempre se disse a favor da meritocracia, que é claro, beneficia os mais ricos e abastados, aqueles que sempre estudaram em bons colégios, podem pagar por um ótimo e excelente cursinho pré-vestibular.

Mas, o que é mais curioso e inusitado, não é ver a elite querendo tirar os direitos conquistados pelos negros e de outras minorias, mas sim, mesmo com as inúmeras explicações que são dadas, é ver e saber de algumas pessoas que se incluem nesses grupos, com um certo conhecimento, pobres ou não, que conseguiram estudar com ou sem dificuldades, que também sofrem com diversos tipos de preconceitos, serem contra a todas as  conquistas, mesmo tendo hoje em dia muito mais esclarecimento e debates a respeito do assunto. Pessoas que preferem lutar ao lado dos opressores, daqueles que não querem igualdade de direitos. Conversei e converso com algumas delas para tentar entender seus motivos e cheguei a ouvir e ainda ouço de alguns negros argumentações que renegam todo o sofrimento que os escravos passaram durante a escravidão, ignorando e menosprezando as consequências que esse terrível episódio da história do Brasil nos trás até os dias de hoje. Repudiam até mesmo a luta do Movimento Negro contra o racismo, criticam e se dizem totalmente contra chamado politicamente correto. Alguns apoiando abertamente políticos que se declaram racistas, que  lutam para derrubar as leis que nos protegem e querem que continuemos em posições inferiores. Assim como ouvi e ouço algumas mulheres desqualificando a luta do Movimento Feminista para obter igualdade entre gêneros e exaltando candidatos que fizeram antes e durante a campanha eleitoral declarações machistas, sexistas, misóginas e que querem manter o patriarcado em nossa sociedade. Confesso, isso me deixou sim um pouco cabisbaixa e ver a falta de empatia demonstrada por essas pessoas me causou um certo espanto.

Ainda vivemos em uma democracia e sendo assim, todos podem expressar-se da maneira que quiser, desde que haja respeito e partindo desta premissa, que de forma respeitosa, durante uma conversa que tive com um homem negro e também é homossexual, perguntei-lhe se achava que seria posto em um pedestal pelos racista e homofóbicos por saber se portar bem? Pois o mesmo havia me dito que “nunca sofreu preconceito e nem racismo porque sabe se comportar, não fica dando pinta de “viado”, segundo palavras dele e que não se vitimiza como fazem a maioria das pessoas negras, achando que tudo é racismo, que desde que sempre o mundo é assim e não é agora que irá mudar”. E continuou seu argumento dizendo que “está de saco cheio desse “mimimi”, de que tudo preconceito, de que tudo é racismo, essa gente quer mesmo é aparecer”. O ouvi atenta e tornei a repetir a pergunta e como não obtive uma resposta convincente, me calei e logo em seguida preferi mudar de assunto, como disse anteriormente, ainda vivemos em uma democracia e opiniões são para serem ouvidas e respeitadas. Mas confesso, fiquei me perguntando o que leva uma pessoa preferir ser oprimido a ter que lutar por seus direitos? Será que para elas, aceitar calado, concordando com tudo, de uma certa forma, também é lutar? O que me pareceu durante a conversa, é que mesmo sendo um homem culto e muito bem informado, ainda sim lhe falta buscar um pouco mais de informação e conhecimento a respeito deste assunto, não só a ele, mas a outras pessoas que fazem parte das minorias, é claro que falta também empatia, não compreendem que mesmo que se ponham ao lado dos opressores, são vistos também como uma ameaça a tudo que eles acreditam, ao modelo de sociedade que eles defendem como sendo a ideal, a perfeita.

Mas ainda sim, acredito em um país melhor, mais igualitário, mais humano e mais justo para todos, aliás, o número de pessoas que fazem parte das minorias que idealizam e desejam que assim seja  é muito maior. E chegará o dia que as pessoas que não se identificam os movimentos de luta por igualdade irão compreender que elas também são beneficiadas pelas conquistas já obtidas e continuarão sendo com as que virão, mesmo que menosprezem ou repudiem, pois a luta é para que todos tenham direitos iguais, tenha a opinião que tiver, seja quem for.

 

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Carla Regina
Sou estudante do último período da faculdade de Jornalismo, gosto muito de ler e de escrever. Me acho simpática, pelo menos é o que me dizem as pessoas quando me conhecem, mas creio que eu seja sim, pois adoro fazer novas amizades e conservar as antigas. Comunicativa, dinâmica e muito observadora, um tanto polêmica. Gosto muito de trabalhar em equipe, mas, dependendo da situação, a minha companhia para trabalhar também é ótima. Pois, na minha opinião, a solidão aguça a criatividade, fazendo com que a mente e os pensamentos fluam um pouco melhor. Comecei a trabalhar muito nova, ainda quando criança e já fiz muita coisa na vida, mas meu sonho sempre foi ser Jornalista e Historiadora, cheguei a ter muitas dúvidas de qual faculdade cursar primeiro, já que para mim as duas carreiras são maravilhosas. Então, resolvi entrar primeiro para o Jornalismo e no decorrer do curso percebi que cursar a faculdade de História não era só uma paixão, mas também uma necessidade para linha de jornalismo que que pretendo seguir. Como sou muito observadora e curiosa, as duas profissões têm muito a ver com minha pessoa. Amo escrever e de saber como tudo no mundo começou, até porque. tudo e todos tem um passado, tem uma história para ser contada.