Um homem e uma mulher casados há 54 anos. O tempo é um só, mas a união é duplicada: eles estão juntos pelo casamento e pela luta. As histórias de ambos se confundem entre si e mais do que isso: contar a vida deles é também contar sobre o Brasil. Seu H. e dona J. (iniciais dos nomes, protegidos por conta da repressão que assombra nossos dias) lutaram lado a lado durante a ditadura por um bem maior: a liberdade. Numa época em que até os livros eram censurados, dona J. rasgava, na madrugada, os que seu H. (hoje anistiado político) tinha em casa e ainda jogava borra de café sobre as páginas para que nem uma palavra fosse identificada. Tudo para proteger o marido. Ela rasgava esses livros sem nem se dar conta de que estava escrevendo algo muito maior: as páginas da resistência. E eu tive a honra de, numa conversa muito franca, ouvir os relatos de um casal que fora assombrado pelas trevas do militarismo, mas lutou para que hoje seus filhos e netos pudessem viver na luz da democracia.
Quando cheguei, seu H. me esperava na sala. Um aconchego, típico de casa de avós, tomava conta do ambiente quando dona J. apareceu e me cumprimentou com um abraço. O cenário, então, era perfeito para relembrar. A história começa quando seu H., ainda menino, incomodava-se com os casamentos que via. Aos 12 anos, achava estranho que meninas com sua idade se casassem com homens muito mais velhos e contra a vontade delas. Silenciosamente, foi ali que a revolução começou a brotar dentro dele, porque o pequeno já compreendia que amor não tinha relação nenhuma com aquelas prisões matrimoniais. Uma criança que achava que amar era ser livre seria, mais tarde, membro importante do Sindicato dos Bancários, filiado ao Partido Comunista Brasileiro e perseguido, preso e torturado pelos mal-amados ditadores. Mas antes de tudo isso, foi em 1961 que seu H. viu que estava certo quando, ainda garoto, achava que sentimento importava. Conheceu dona J., passou a amá-la, casou-se com ela e juntos, tiveram dois filhos. Isso foi essencial para que, como eles mesmos disseram, fosse possível “segurar a barra”. Olhando-se com orgulho, o casal contou que foi a matriarca que aguentou o rojão quando o marido foi preso. Ela protegia a família, a casa e os amigos de partido de seu H.. Um deles, inclusive, quando ia à casa dos dois, tinha que dar voltas pelo quarteirão para assegurar que não era observado pelos militares antes de entrar. Quando perguntei à dona J. sobre o papel das mulheres na revolução, ela me respondeu que naquela época nem entendia direito o que aquilo tudo representava. “Eu estava em casa, cuidando dos filhos quando alguém chegava e me falava que meu marido estava discursando na praça” conta, entre risos. Seu H. reconhece, orgulhoso, que sua esposa na verdade foi sua base. Ela, como diz a canção, “possui a estranha mania de ter fé na vida”.
Desde 1965, o aposentado é filiado ao PCB. Ele relembra a raiva que sentiu ao ouvir o anúncio do golpe militar sobre Jango. “Na hora, o sentimento foi de revolta”, conta seu H., que foi preso três vezes. A primeira prisão aconteceu por causa de seu cargo no Sindicato dos Bancários; a segunda, porque participou da Passeata dos 100 mil, em 1968 e a terceira, em 75, porque seu nome constava como assinante de um jornal considerado subversivo. Ele não pensou em desistir, não pensou em mudar de país, não pensou em abandonar o partido. Ele ficou e lutou. Quando perguntado, aliás, sobre o que considera essencial a luta, ele responde prontamente: imposição. “As pessoas precisam se impor e se impor é ter orgulho de ser quem se é”, afirma. Para ele, a ameaça fascista vivida atualmente representa o atraso e o preconceito da sociedade e a volta da ditadura é um risco iminente. Lá pelo final da conversa, seu H. me falou que policiais chegaram a agredi-lo no rosto com um pedaço de madeira e feriram sua mão em outra ocasião, quando tentava se defender de golpes. Prova de que essa história que contam por aí que “a ditadura não foi tão ruim como falam” é absurda. Ele e a família se mudaram 8 vezes por conta da perseguição sofrida. Eles poderiam ter desistido há muito tempo, mas ainda lutam por meio do voto. Indaguei se ele e a esposa ainda exercem o direito de votar e descobri que marcam presença em todas as eleições, o que me deixou surpresa, já que quase ninguém anda querendo participar da tal “festa da democracia”, mesmo que no convite esteja bem claro que ir é obrigação. Isso me fez perceber que votar, conscientemente, é participar do que eles construíram. Para seu H., o que falta nessa geração é consciência. Consciência de que a repressão de fato existiu; de que a ditadura foi cruel e de que, como Belchior escreveu e Elis Regina cantou, “o passado nunca mais”. Ele ainda me disse que acredita que o presidente que assumirá no ano que vem precisa mudar o país por meio da igualdade e que se considera um comunista. Quando seu H. disse isso, todos na sala sorriram. Não posso falar pelos demais, mas meu sorriso, particularmente, foi de quem ouviu alguém dizer o que pensa sem medo, pois lutou para que hoje pudesse expressar sua opinião política.
Dentre risos, opiniões, lembranças doloridas de amigos mortos e memórias orgulhosas pela história que fizeram, o que considerei mais intenso foi a esperança que o casal tem quanto ao futuro. Quando olham para as fotos da família sobre a mesinha, no canto da sala, parece que tudo valeu a pena. E é verdade, pois “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, escreveu Fernando Pessoa. E se existe uma coisa que seu H. e dona J. têm é a alma grande. Maior do que o medo, do que o cansaço, do que o ódio dos outros. Maior do que o tempo. Eles são a maior prova de que o amor venceu, porque o amor é resistência. E se hoje ainda posso escrever uma matéria como essa, devo a eles duas vezes esse privilégio: por terem me recebido com a coragem de contar o que viveram e pela liberdade de expressão que (por enquanto) tenho, a qual eles ajudaram a conquistar antes mesmo de eu nascer. Concordo com Cartola quando ele canta que o mundo é um moinho, mas, nessa entrevista, me convenci de que o sol nascerá e de que é possível levar a vida a sorrir, pois a felicidade, por si só, já é uma revolução.
*Matéria publicada no jorna A Voz da Favela edição novembro de 2018