Dois fatos sem qualquer ligação entre si me chamaram a atenção na semana que passou como exemplares do momento de esquecimento e ignorância que o país vive, sem memória, sem história, sem vergonha de expor ao ridículo instituições e pessoas que pela posição que ocupam e por refletirem com seus atos estas instituições deveriam observar com muito mais zelo e atenção as atitudes no exercício de suas funções. Separados por menos de dois meses no tempo, ambos refletem o caráter do Brasil que se anuncia no horizonte sombrio.
O primeiro fato foi a concessão ao presidente eleito Jair Bolsonaro da Medalha do Pacificador, a mais alta honraria do Exército Brasileiro, por ter supostamente salvo a vida de um jovem do afogamento há 40 anos. A notícia divulgada na semana passada por Hélio Fernandes em sua página no Facebook não traz maiores detalhes, mas não disfarça o misto de surpresa e deboche do veterano jornalista que, em quase cem anos de vida há de ter testemunhado inúmeras condecorações e medalhas civis e militares.
De fato, a Medalha do Pacificador concedida tão tardiamente não limpa a ficha do capitão Jair Bolsonaro, acusado e julgado por insubordinação, indisciplina e outros delitos na década de 1980, quando assinou artigo na imprensa conclamando o jovem oficialato ao protesto contra os soldos de então. Em entrevista resultante da publicação falou em promover explosões em quartéis e disse que o Exército era uma “verdadeira vergonha”. Preso por 15 dias, acabou respondendo no Superior Tribunal Militar, foi absolvido e hoje é o orgulho dos militares que lhe outorgam a comenda máxima. Conheça a história: https://www.bolsonaropresidente.org/em-1987-bolsonaro-admitiu-atos-de-deslealdade-no-exercito/.
O segundo fato foi a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo de outubro último de extinguir a ação movida por parentes do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado sob tortura no DOI-CODI em 1971, aos 23 anos. Os desembargadores Luiz Fernando Salles Rossi, Milton Carvalho e Mauro Conti Machado entenderam prescrita a possibilidade de a família responsabilizar o comandante do DOI-CODI paulista à época, coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, porque se passaram 39 anos do crime. A socióloga Eleonora Menicucci, presa no mesmo lugar, testemunhou ter visto o jornalista sob tortura no pau-de-arara, em estado lastimável, mas seu depoimento não foi considerado pelos desembargadores.
A justiça de um lado, o exército de outro, sinalizam com nitidez à sociedade a volta dos tempos sombrios da ditadura militar, hoje com o agravante das mídias eletrônicas disseminando falsidades para reescrever a história, já que não se aprende mesmo nas escolas – e a partir de Bolsonaro vai se estudar menos ainda. Já se questiona que tenha acontecido a própria ditadura militar, ao mesmo tempo em que se apoia e incentiva a tortura como método policial e se absolvem policiais acusados de extermínio em favelas no tribunal do júri. Rápido como raio, voltamos à delação anônima, ao império da mentira, à paranoia generalizada em casa, no trabalho e na rua. A criminalização das esquerdas avança nos três poderes, como se elas fossem o inimigo interno. Bolsonaro já afirmou que o maior desafio do seu governo é vencer a guerra ideológica, e não a corrupção, como, aliás, as descobertas no seio da família presidencial parecem antecipar.
Neste ambiente tão desfavorável e oposto ao império dos direitos humanos como preconizados pelas Nações Unidas não é de estranhar a ação da Polícia Militar invadindo e em seguida incendiando uma favela em Curitiba na certeza absoluta de que nada lhe vai acontecer. O estado policial já se instalou e tem apoio de grande parte das direitas, como já mostravam as selfies com policiais nas manifestações pelo impeachment. Os dois fatos destacados aqui são exemplos de como o passado está sendo reescrito de acordo com o que se pretende para o nosso futuro imediato. Prepare o seu coração!