O tratamento dispensado a repórteres brasileiros e estrangeiros na posse de Bolsonaro foi apenas uma pequena amostra do que virá por aí, e os mais antigos, como o locutor que vos fala, sabem bem disso. Obrigá-los a estar às sete horas da manhã no Centro Cultural Banco do Brasil para a cobertura de um evento agendado para a tarde foi demonstração de desprezo pela imprensa, considerando que todo mundo estava comemorando a virada do ano, comendo, bebendo, brindando. Ninguém precisava estar de pé às cinco e meia ou seis horas, nem mesmo os soldados que patrulhavam desde o raiar da manhã as vias principais da capital.
O que se seguiu foi um festival de arrogância e prepotência usado como pretexto para franceses e chineses abandonarem o Itamaraty, depois de muito bater o pé e ameaçar com acusação de “cárcere privado”. Foram exemplos infelizmente não acompanhados pelos nossos coleguinhas, previamente desautorizados pelas chefias de qualquer atitude de defesa da dignidade no exercício de suas funções. Quem se sentir ofendido, engula o choro, ou vai perder o emprego.
Durante a ditadura militar, com os censores dentro das redações vetando o que bem queriam havia mais respeito dentro e fora do jornalismo. Lembro-me de uma cerimônia militar no começo dos anos 1970 no Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, quando um fotógrafo de jornal ousou sair do cerco imposto pelos soldados para um flagrante especial, um ângulo diferente. Foi conduzido até uma viatura distante, sob os olhares assustados dos demais fotógrafos e repórteres ali presentes. Numa atitude de protesto surpreendente, um dos colegas pôs seu equipamento no chão e logo foi seguido por outro, mais outros, todos. Os repórteres, por sua vez, puseram blocos e canetas também aos seus pés e ficamos todos de braços cruzados acompanhando o início da solenidade.
Em questão de segundos, o fotógrafo foi trazido para o cercadinho onde estávamos e tudo voltou à normalidade excepcional daqueles tempos, sem qualquer comentário ou registro do acontecido no noticiário do dia seguinte. Havia, então, um código de ética e comportamento de parte a parte. O trabalho da imprensa era reconhecido e até defendido por amplos setores da sociedade e do governo. Jornais e revistas publicavam gama variada de opiniões e tendências, colunistas atacavam a censura e reclamavam respeito aos direitos humanos. Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde, era exemplo maior, mas já naquela época Jânio de Freitas, Mino Carta e tantos bons nomes expunham feridas do regime de exceção. O Estado de S. Paulo publicava no espaço das matérias vetadas, todos os dias, trechos dos Lusíadas de Luís de Camões. O Jornal da Tarde, do mesmo grupo editorial, publicava receitas de bolos e assim, de uma maneira prosaica mas jamais inócua, ambos os diários davam satisfação ao leitor sobre o quanto haviam deixado de noticiar.
Hoje, infelizmente, nem militares nacionalistas como havia naquele tempo se encontram nos comandos. Quem defende a Petrobras, o Banco do Brasil, a Embraer?! O pensamento da caserna está na imagem de um capitão insubordinado, sem estudo nem cultura, que por artes e manhas urdidas aqui e nos Estados Unidos se elegeu com o auxílio luxuoso de juízes apequenados, cúmplices e temerosos de terem as vísceras corrompidas expostas à opinião pública.
O protocolo seguido na posse é o relho da senadora gaúcha reaça sobre a imprensa que o novo governo julga esquerdista, num exemplo de rara miopia ideológica e política. Sem argumentos nem para um debate de ideias na televisão durante a campanha, o governo terá de impor a sua versão de tudo, mesmo que não tenha o mínimo resquício de veracidade, como dizer que Queiroz é petista infiltrado na família do presidente. Essa é de fazer corar frade de pedra.
Prevejo para os próximos meses o país se exibindo ao mundo em vexames seguidos, num crescendo ensurdecedor, até não restar mais nenhuma instituição sã e salva de denúncias que abastecerão a mídia para atender interesses de grupos na disputa pelo poder. Lamento informar que ninguém vai se salvar, a começar pelos meninos do capitão, os impossíveis, pitbulls ou que outro apelido tenham. Como um castelo de cartas marcadas, tudo vai ruir, conchavos, acertos, versões. E digo mais: antes do Mourão tomar as rédeas dessa carroça velha, o país ainda ouvirá Jair gritando dentro do Palácio: “Esse filho da puta quer me foder!”