A favela é cidade

Reprodução da Internet

”Favela é cidade! E quanto mais a comunicação trabalhar nisso, mais claro a favela e a periferia serão o centro dessas questões.”

Numa entrevista para o Jornal A Voz da Favela, o professor Adair Rocha aborda questões da comunicação comunitária, da vida dentro das favelas e as visões internas e externas que os indivíduos constroem acerca desses ambientes.

Adair Leonardo Rocha é professor adjunto do departamento de comunicação social da PUC-RJ e da UERJ. Atua nas áreas de cultura, comunicação, política, favela e cidadania. É graduado em Teologia pela PUC-RJ (1979) e é bacharel em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco (1979). Tem mestrado em Educação pela PUC-RJ (1985), doutorado em Comunicação pela UFRJ (1997) e pós-doutorado pela mesma instituição (2012).

Autor de algumas obras literárias, com destaque para o livro: “Cidade cerzida: a costura da cidadania no Morro Santa Marta” (2000). No livro, o professor conta a história da primeira comunidade pacificada na cidade e fala sobre a relação entre asfalto e favela sob a ótica da comunidade, ajudando a romper com o estereótipo de lugar de violência, criminalidade e tráfico de drogas. Envolvido com o Morro Santa Marta desde 1970, o livro reúne todas as suas pesquisas e experiências no local.

AVF- Como se constitui a organização de comunicação comunitária dentro das favelas?

AR – Na verdade, essa questão tem diferentes dimensões, tem um lado que podemos chamar de histórico e como esse processo historicamente vem acontecendo. A minha experiência no Rio de janeiro remonta dos anos 70, exatamente nesse ano eu tenho a lembrança do primeiro jornal de Comunicação Comunitária que foi a partir do morro Santa Marta: o jornal ECO. Havia uma coisa que é muito boa de lembrar hoje: o mimeógrafo. Para a comunicação é muito importante ser lembrado, pois era a forma de reproduzir folha por folha.  Era datilografada e funcionava a álcool e tinha um cheiro de álcool assim que produzido.

Por isso, a população imediatamente traduzia como “cadê o cachacinha?”. Esse equipamento na comunicação comunitária foi um dos mais importantes. Através do mimeógrafo se fazia outro tipo de comunicação: “o mosquito”. Tratava-se de uma pequena informação a ser dada, que saía em meia folha, uma forma que os metalúrgicos paulistas se comunicavam durante as greves, como forma de resistência. No final dos anos 70 e no início dos anos 80, o ABC Paulista teve a chamada “greve colorida”. A repressão era grande, patrões e policiais estavam unidos e por isso não tinha como fazer essa greve de forma tradicional, então foi criada a greve com o “mosquitinho” de cores diferenciadas. Naquele papel dizia os horários, e conforme a cor do papel as máquinas paravam no horário determinado. Foi um tremendo sucesso e a polícia não conseguiu reprimir.

AVF- Quais as maiores dificuldades na propagação de uma visão local da própria realidade?

AR- Inspirado no “cachacinha” várias favelas e periferias começaram a manifestar seus pequenos jornais e assim surgiam outras traduções do ECO, que eram as rádios comunitárias na baixada fluminense, especialmente, Belford Roxo. A partir disso veio o pedido da legalização da rádio e o enfrentamento de problemas sérios por serem acusadas de rádios piratas. Denuncia feita pela mídia comercial que tinha medo da concorrência. As mídias comunitárias não deixam de ser comerciais também, mas é traduzida e pautada a partir dos moradores, que são sujeitos e protagonistas desse processo. Não falam favela Santa Marta e sim Dona Marta, porque a mídia comercial fala sobre – uma visão de fora da favela -, então favela Dona Marta é o que vai daqui de baixo até o Cristo, “Mirante Dona Marta”. Mas a favela desde a sua criação é Santa Marta e para falar de fato disso tem que ser quem vive na favela. Para os moradores é quase uma traição, porque nas entrevistas eles falam “Santa Marta” e o Editor do Jornal coloca que é Dona Marta, como ele não vive na favela, não entende da importância da fala a partir do contexto interno da favela.

Esse próprio conceito de comunicação comunitária tem uma força enorme, porque qualquer adjetivo que você dê é conseqüência de que não está acontecendo o que tinha que acontecer, que é o papel da comunicação, como o papel dela é informar nas suas diferentes dimensões desde o do fato em si até o processo gerador do fato. E isso começou a partir de interesses comerciais, ou seja, de como vai vender, então a mídia começou a traduzir com a visão mais maravilhosa que possa ter. Se você vive numa pequena cidade não dá para contar uma história diferente, então não dá para criar uma maravilha, porque todo mundo sabe. Mas se você está falando de um grande espaço, onde você tem várias pautas, vai ser a história que mais convencer para vender. Isso é o que a grande mídia faz, ela conta a história que vende melhor, a partir dos fatos e das informações que vai trabalhar. Quais são os grupos nas favelas e periferias que estão lutando pela autonomia e pela forma da organização? A comunicação comunitária percebendo que a comunicação em si está falando a favor de uma outra classe, de um outro setor da sociedade, tem como obrigação começar a traduzir pelos acontecimentos reais e locais. É claro que, inicialmente, o jornal e a rádio se transformaram nos principais meios de comunicação comunitária, e no decorrer a linguagem que se entende hoje são das novas mídias, das novas tecnologias e o que isso gerou são as ferramentas de hoje.

AVF- Qual a importância de existir uma rede de comunicação local frente aos ideais fascistas que ganham força e ameaçam a vida – e a própria auto representação dessas populações?

AR – A formação de redes, os equipamentos que traduzem cada vez mais a relação entre diferentes meios de comunicação comunitária, é uma demanda que está colocada pela confecção existente. Como é que a mídia comercial continua trabalhando a favela como se não fosse parte da cidade, como sendo algo que só tem ausências e que diante disso só se traduz o crime, o medo, as formas de tradução de segurança como se fosse coisa de polícia e tudo mais?  Essa resposta em forma de rede é a tradução mais atual e ao mesmo tempo a tradução que vai ter que ajudar a enfrentar as questões de natureza política que elas têm. Assim como a comunicação comunitária é uma questão política, o que está em jogo em tudo isso é uma questão política, então, agora essa tradução em torno dos avanços direitistas, dos avanços em alguns aspectos que inclusive podemos chamar de nazistas. Em outros aspectos é preciso entender bem que nem todo mundo que votou nessa proposta de direita é de direita, nem todo que votou nessa proposta de direita é nazista, mas existem nazistas direitistas e isso é expressão da própria sociedade brasileira e de como a população vê essas diferentes dimensões da vida, quando se trata de valores, de questões de gêneros etc. O questionamento se pode ou não levantar esses temas nas escolas desenvolveu as chamadas escolas sem partidos, que são processos que levam para a competição do dia a dia, porque a escola sem partido é um projeto de lei que está em discussão e certamente será votado. Estão querendo levar para dentro das instituições exatamente o controle do que se quer da sociedade, quando na verdade as instituições existem para reafirmar a pluralidade, a diversidade e a democracia enquanto processo. Agora certamente vão chegar nas minhas aulas dizendo que vão gravar e esse gravar ou não é que é a disputa do que está em jogo. E como a comunicação comunitária vai trabalhar nisso? Na defesa da autonomia, da liberdade, na liberdade da imprensa, na liberdade da fala e na liberdade do pensamento crítico da sociedade. Essas questões são a grande demanda e o desafio para a comunicação comunitária.

AVF – Como a comunicação comunitária pode impactar a vida dos moradores das favelas?

AR – A forma de comunicação que está respondendo a atualidade das demandas que são colocadas é o desafio da comunicação comunitária e o fato dela ter uma tradução hoje que está mais ligada às favelas e às periferias. Isso significa repensar a cidade, qualquer pensamento da cidade como cidade partida. Isto é, você tem o asfalto que é a cidade, você tem a favela e a periferia que é o local da criminalidade. Você não entendeu nem o que é a favela nem o que é o asfalto. Só vai entender o que é a favela e o que é o asfalto quando você enxergar o conjunto, porque se você só olhar a potência da cidade, então precisa rediscutir a relação da cidade com potência e fragilidade. Um exemplo claro de potência é o Carnaval, nessa festa cênica, que é uma das maiores do mundo, o sambódromo tem a disputa das redes de televisão. São as disputas de mercado, porque a mídia apresenta todo o processo como uma disputa da cidade, mas experimenta tirar a favela. Essa festa simplesmente não acontece. O Carnaval só acontece, porque a favela que constrói o produto. Onde estão as escolas de samba? Estão no Leblon ou na Barra? Não, estão na favela. Está em Madureira, na Mangueira e em diferentes favelas. Claro que citei apenas um exemplo na cultura, mas poderia falar também do funk e do hip-hop. Há pouco tempo tivemos que votar num projeto que estava na Assembleia Legislativa, na época como assessor do ministro da Cultura, Gilberto Gil, tive que defender que o funk e o hip-hop são cultura. Imagina ter que defender o óbvio. Essas conclusões existentes, certamente, têm uma forma de luta e política hoje que eu reduziria nessa expressão “Favela é cidade!” e quanto mais a comunicação trabalhar nisso,  mais claro a favela e a periferia serão o centro dessas questões.

AVF – Os meios de comunicação comunitária buscam retratar com o máximo de autenticidade o que acontece nas favelas – o que a mídia hegemônica ignora. Entretanto, esse veículo não tem grande alcance, por vezes, o público em geral nem sequer demonstra interesse em acompanhar esse trabalho. Por que você acha que isso acontece? Qual a influência dos estereótipos construídos em torno da favela e seus habitantes, nesse problema?

AR – Isso tudo está retratado na questão anterior que eu coloquei de que favela é cidade. No entanto, a tradução midiática é a cidade partida, como se o cidadão de bem estivesse no asfalto e na favela está o crime e o perigo. Logo, todas as coisas que serão traduzidas no noticiário estão dessa forma de separação. No meio onde as mídias trabalham o asfalto é a “cidade assustada”, porque tem um tiroteio na Rocinha e a mídia diz que os alunos da PUC ficaram assustados, tem tiroteio no Cantagalo a mídia diz que os moradores de Ipanema e Copacabana ficaram assustados. Na verdade a imagem passada é a que as pessoas apoiam essas visões de segurança reduzidas à polícia e não a visão de segurança pública para acesso à saúde, à moradia, ao saneamento básico e à educação.

Essa comunicação traduz cada vez mais a necessidade de colocar a polícia dentro da favela, para que as pessoas tenham uma segurança que a mídia criou. Que mídia é essa que traduz sintomas? Tudo que a mídia coloca que são causas na verdade são sintomas, toda a questão da violência levantada são sintomas. A causa toda está no modelo de cidade e sociedade que a mídia do mercado tem que transformar a existência da favela. Uma coisa é a forma de resistência e desistência da favela criar saídas para esses não projetos comuns para sociedade e por causa disso manter essa potência que estamos falando. Outra coisa é um modelo onde a existência da favela, tem a ausência da política pública, a falta do básico como se fosse normal. Então esse caminho de sintomas e causas é o caminho que a mídia comunitária tem que ter para apresentar um outro modelo e ser mais acompanhado e seguido. A informação só será bem dada se ela partir dos protagonistas reais dessas informações. Quanto mais perspectiva crítica a população tiver mais perspectiva de traduções da sociedade serão possíveis. É traduzir bem essas disputas que o papel da mídia comunitária vem fazendo.

AVF – Existe(m) algum(ns) ponto(s) na legislação da comunicação que seja(m) um grande empecilho para a expansão dos veículos comunitários e que pode tornar-se mais difícil no próximo ano? 

AR – Eu diria que os empecilhos são as traduções literais da vida política existente. Do ponto de vista da legislação estamos devidamente pautados, completamente definidos em expansões onde tem limites com as novas tecnologias e internet e temos que aprender com isso. Perdermos as eleições e quem ganhou foi a fake news, que foi a tradução sistêmica e orgânica da internet.

Participei de um grupo nacional das discussões das rádios comunitárias com milhares de projetos que estavam no Ministério da Cultura e não eram pautados para que a outorga fossem concedidas. A primeira coisa de que se precisa disputar é a própria concepção de comunicação comunitária, porque o pastor pode apresentar um projeto de rádio que não seja comunitário, que seja apenas confessional, o deputado que diz que é comunitário, mas é partidário, ou o sindicado que apresenta como comunitário, mas é corporativista. Temos que fazer uma leitura mais ampla dentro da política do que é comunitária. E um projeto comum, que parte da diversidade e da pluralidade, todos têm que estar presentes nesse projeto. No bairro moram pessoas diferentes com pensamentos diferentes, religiões diferentes, trabalhos em diferentes lugares, mas as conduções que eles usam são as mesmas, as escolas que vão são as mesmas, os projetos de moradias são os mesmos, portanto é comunitário quando trata do comum que leva o projeto para todos e não apenas para um setor. Nesse sentido a legislação ainda traduz muito essa disputa política que está em jogo.

AVF – Durante as eleições e após a apuração, percebeu-se uma maior inclinação da população carioca a ideais de caráter opressor, principalmente contra os pobres e favelados com o estigma de “perigosos”. Pode-se dizer que a opressão e a repressão representada pelas unidades “pacificadoras” prepararam terreno para intensificar a ofensiva contra as minorias dentro da favela no próximo período?

 AR – Na verdade isso demanda uma leitura do que significou as UPPs e quais papéis tiveram. Tem o seu lado positivo, mas não temos que fazer a análise do bem e do mal. A tradução de tudo isso é mais complicada, se não é discutido questões de fundo que estão em jogo, como a legalização ou não, como a descriminalização ou não do comércio das drogas. Essa discussão toda em torno da segurança é o que traduziu esse resultado eleitoral, ela significou mudança para grande parte da população, então para essas pessoas é relativo o que significa política. Quando aparece algo que apresenta uma certa mudança as pessoas se adaptam, mas se no dia a dia continuar funcionando da mesma forma não estarão mais aderindo. Assim como a UPP no início teve uma valorização maior na venda dos imóveis. Era um projeto de silenciamento da violência como se na cidade tivesse outra perspectiva, mas como não houve uma tradução social da segurança reduzida à polícia, então o projeto se tornou mais repressivo e entrou no campo da corrupção das mais diversas formas. A mídia comunitária precisa traduzir cada vez mais essas palavras que usamos, o poder paralelo é atribuído na maioria das vezes ao tráfico, e o tráfico não é poder paralelo nem aqui e nem em lugar nenhum, porque o tráfico é parte da terceira economia do mundo.

*Matéria do jornal A Voz da Favela edição de dezembro 2018