A noite daquela quarta-feira estava quente e como todo dia no Rio de Janeiro, parecia ser a noite mais quente do ano.
Enquanto minha vontade era de puxar uma mangueira para o quintal e me molhar antes de dormir, a realidade era que estávamos sem água há quatro dias. Nada de novo na rua em que moro. Pensei!
Foi exatamente durante esse pensamento, que dois vizinhos surgiram na entrada do meu quintal e o convite a seguir me pareceu uma ótima oportunidade de sair daquele calor entre quatro paredes.
A ideia era ir até um projeto de Jiu-Jitsu que acontece periodicamente no bairro vizinho, chamado de Villa Rosário. Um dos bairros que vem sofrendo igualmente com a falta de políticas públicas afirmativas, ainda que de maneira mais sutil, que nas vielas adjacentes.
Já que a caminhada até o local levaria cerca de 20 minutos, coloquei uma camiseta rosa com a escrita “não dá mais” (pois ela sempre abre espaço para diálogos), um short azul e um tênis confortável.
Seguimos assim, rumo ao projeto Atalaia.
Chegando ao local o que pude ver, encheu meu coração canceriano de amor. Crianças, adolescentes e adultos unidos no que por algum momento foi capaz de me levar para longe da sensação de insegurança, que nosso território nos faz sentir diariamente.
Por 2 horas aquele lugar nos permitia ver e sentir para além da realidade de vulnerabilidades emocionais e/ou sociais a começar pela própria prática do esporte que requer foco, disciplina e respeito como base.
Observei uma fileira de crianças no desabrochar dos seus talvez sete anos de idade, protegidas com seus uniformes na cor branca, preta ou azul como se fossem armaduras para tudo que ainda enfrentariam no mundo.
Alguns meninos e apenas uma menina observavam os mais velhos em ação no tatame. Os olhinhos brilhavam, as mãozinhas por vezes iam na boca, parecendo refletir o quanto aquele momento era surpreendente e novo.
Em ação os meninos adolescentes e mais uma vez apenas uma menina, eram guiados pelos treinadores adultos.
Fiquei ali sentada tentando captar cada momento, dedicação e afeto que aquele dia representava não só para aquelas crianças e adolescentes, mas para as mães que a cada momento apareciam na porta, chegando de suas jornadas de trabalho para buscar suas crias.
Vez ou outra me assustava com as palavras duras do treinador que logo seguiam de outras como: “Eu sei que você sabe fazer. Levanta. ” E uma leve passada de mão na cabeça, como outro registro de afeto que para muitos era a possivelmente a representação da figura paterna, na maioria das vezes tão ausente.
O projeto que leva o nome de Atalaia, apesar de acontecer em um espaço cedido por uma igreja evangélica, não expôs em nenhum momento ideologias religiosas (apesar de claramente cada um ter sua orientação política expressiva em suas respectivas redes sociais ou chegando com suas blusas declaradas antes da troca pelo kimono ser feita) a não ser pela oração final, o que me fez torcer um pouco o nariz para a atitude, mas que no mesmo momento me fez abrir um questionamento comigo mesma.
Qual o peso daquele momento final diante de toda a transformação positiva e elevação coletiva, que aquela atitude de ensinar um esporte, como forma de acesso à novas visões distantes da marginalização, para essas crianças e adolescentes traria efetivamente nesse momento?
Tratei de perguntar ao meu amigo, qual a interferência religiosa o projeto fazia na vida das pessoas e a resposta foi que nenhuma interferência era feita. Aquele era um espaço utilizado de forma democrática e voluntariamente coletiva, em prol de uma nova oportunidade positiva em meio ao caos territorial.
Olhei em volta e nenhuma identidade visual aparente se apresentava como indícios de reforço religioso. Fiquei mais 1 hora no espaço para ter certeza de como se desenvolveria a próxima turma e as mesmas práticas se repetiam.
Dessa vez o tatame deu lugar à uma enxurrada de 15 homens adultos e mais uma vez, apenas uma menina, que em nada teve seu treinamento diferenciado dos demais, considerando seu gênero e idade.
Foi lindamente revigorante para a alma desta feminista que vos escreve ver a igualdade daquela garota num espaço que outrora seria exclusivamente masculino.
Saí daquele espaço com várias perguntas e questionamentos pairando minha cabeça.
Até que ponto deixamos as nossas questões individuais, sejam elas politicamente partidária ou não, interferir em ações de promoção de qualidade de vida coletiva?
Até que ponto nós simplesmente pegamos nossos discursos e criamos muros, ao invés de pontes?
Não estou querendo dizer aqui, que devemos engavetar nossos discursos ou expressões de diálogos e sermos passivos diante de posicionamentos equivocados, mas até que ponto a nossa militância excede o nível lúdico e passa bem distante das reais necessidades coletivas?
Se colocarmos na balança, nossas narrativas e discursos sobre verdadeiramente o que representa os direitos humanos, para além de comunicações vagas sobre o tema, tem sido realista ou igualmente rasa ao debate dos que chamamos opositores?
Nossos discursos têm seguido um caminho unilateral, por um viés que olha apenas para o nosso lado da questão ou por uma ótica que se ajusta ao todo buscando fazer concessões que nos faça ver além?
Enquanto isso sei que esse não é um texto que termina com respostas.
Definitivamente finalizo esse artigo questionando a mim e à você, se estamos REALMENTE preocupadas(os) em criar pontes ou levantamos muro à cada novo discurso que fazemos questão de introduzir em nossas redes sociais ou com nossos vizinhos.
Eu não faço ideia se essa galera do projeto Atalaia, tem noção da responsabilidade que possuem em mãos, espero que sim. Quanto a nós, nos cabe recapitular qual o bem e qual o mal realizamos com nosso falar, agir e ou digitar dos dedos.