O Rio de Janeiro é a cidade com maior percentual da população vivendo em favelas. Isso não é novidade para ninguém, mas mesmo assim, sabemos a forma como nossas áreas periféricas são tratadas pelas mídias e lembradas pelo restante do mundo: um sinônimo de carência, tráfico e perigo. Assim como na Agência de Notícias das Favelas, existem vários outros projetos que trabalham para trazer um novo olhar para essa situação. Hoje, destacamos o projeto Favelagrafia.
O grupo, formado no Morro do Turano, através de fotos, mostra as favelas de forma autêntica e registrada pelos seus moradores, que são quem mais entendem seu contexto. O objetivo do projeto é dar visibilidade para o dia a dia das favelas, suas histórias, paisagens e personagens. E está presente em vários pontos da cidade, como o Complexo do Alemão, Santa Marta, Babilônia, Rocinha e Providência, entre outros.
O Favelagrafia tem apoio da Prefeitura do Rio e de agências de publicidade, trabalhando de uma maneira comunitária, e tudo é reinvestido no próprio projeto. Dessa forma, há a ajuda de muitos parceiros locais, lideranças comunitárias e jovens, todos juntos na missão de dar outra marca às favelas.
Falamos do projeto aqui hoje em função da foto que compartilhamos no instagram da Agência de Notícias das Favelas, que foi um dos principais trabalhos deles. Nela, podemos ver cinco rapazes em uma escadaria, com seus rostos cobertos por camisas, e portando diferentes instrumentos, como saxofone e trombone. A legenda é a seguinte: “Alguns lutam com outras armas”.
Fomos atrás da história por trás desse trabalho, que virou o marco do Favelagrafia. A foto foi tirada no Morro do Turano e postada no perfil do Instagram, em outubro de 2016, e teve uma repercussão imediata e meteórica. Quem olha de primeira, considerando o ambiente e as vestimentas, pensa que ali são armas e bandidos. Mas é aí que mora a surpresa da foto.
A repercussão incluiu matérias em veículos como o jornal Extra, revista e site do “O Globo”, e até internacionalmente, com destaque da CNN. A repercussão dura até hoje e as matérias continuam a sair e a foto é sempre relembrada. O projeto Favelagrafia chegou até a ir ao programa “Encontro com Fátima Bernardes”, da Rede Globo. Entre artistas que compartilharam a foto, destaque para a cantora Maria Rita e o rapper americano Snoop Dogg.
Mas afinal, quem foi o responsável por esse lindo trabalho? Também fomos buscar isso. O olhar por trás de câmera foi o de Anderson Valentim, artista de 35 anos, nascido e criado no morro do Borel, local em que o Favelagrafia também está presente. Ele é formado em design gráfico, e trabalha com música, fotografia e desenho. Para acompanhar seu trabalho, é só ir no seu perfil do Instagram (@anderson.valentim.948) ou do Facebook.
Toda a sua vivência morando em uma favela refletiu em quem ele é hoje, na sua arte e seu comportamento. “Minha formação se deu vendo dificuldades e belezas da convivência com o ser humano, do amor ao próximo. Carrego isso como meu passaporte para onde eu vou, e expresso isso de alguma forma na minha arte, no meu convívio. Está no meu DNA, e muitas das minhas obras são resultados disso. São 35 de anos de favela, e não tem como ser diferente, toda essa questão social, política, influencia na minha fala, meu modo de agir, e no que eu me tornei como ser humano.”
Então entrevistamos Anderson a respeito do seu trabalho, dentro e fora do projeto, além de buscar saber mais sobre a história por trás da foto que rodou o mundo.
ANF – Como você se aproximou da fotografia? Foi apenas graças ao projeto ou já tinha contato anterior?
Anderson: Eu já fotografava de maneira amadora desde sempre, curtia muito mexer com imagem. Comprei uma câmera, fui fotografando e fui para faculdade de design gráfico. Lá eu comecei a estudar mais, aprendi questões de estúdio e técnicas, fui me aperfeiçoando, e chegou o projeto. Antes da faculdade, meu olhar era muito cru, eu não sabia como direcionar isso, e o projeto me deu uma visão do que eu queria fotografar, o que eu gostava, ele me deu um caminho. Antes para mim era só uma foto, algo para “trampar”, não tinha um olhar muito artístico. E hoje, depois do projeto, meu olhar é totalmente artístico e essa é minha linha de trabalho.
ANF – Você considera a fotografia o seu principal meio de trabalho atualmente?
Anderson: O ponto chave é que eu sou um artista, e a fotografia é uma das plataformas que eu uso para expressar minha arte. Eu também sou músico, uso isso em determinados momentos para me expressar; e tem o desenho e a fotografia, que são outras ferramentas. Não gosto de me enquadrar num formato só, até porque na vida a gente faz várias coisas.
ANF – Qual é a importância do projeto na sua vida?
Anderson: Ele faz o que já deveria ser feito há muito tempo: ouvir o outro lado, que nunca se ouviu. Tem-se uma visão de fora para dentro, que é da mídia ou então de alguém que vai lá e fala sobre algo que não vive. Precisa-se da voz de quem está lá 24 horas e vive a realidade, quem conhece, volta para dormir. A ideia do projeto é essa. Quando você dá voz as pessoas que realmente estão naquele local, tem potencial e talento, só é possível ter sucesso. A gente começou a mostrar a outra forma. A mídia mostra algo que representa 10% do que acontece, mas que fica muito grande, e a favela fica conhecida por isso, infelizmente.
ANF – E como é a recepção dele nas ruas?
As pessoas se identificam com isso. A recepção é a maior possível. Eu fico bobo quando a pessoa vem e me fala que a perspectiva dela mudou, quando ela viu uma foto e se identificou, e aquilo arrepiou, mexeu com ela. E eu fico emocionado de ver como é importante dialogar de outra forma e dar oportunidade ao outro lado falar também. Você começa a entender a importância e a relevância que tem a outra fala e o projeto em si. As pessoas me param na rua e me reconhecem. Elas vão nas redes sociais, que são o maior contato, querem conhecer, querem saber sobre o outro lado que nunca foi contado, ou é feito de maneira errada, mas toma uma forma muito grande.
ANF – E a respeito da foto, qual foi a sua ideia? Porque os rostos tampados?
A camisa no rosto sempre teve ligação com uma questão marginal, ainda mais na periferia, ela sempre foi esse ícone, e vai sempre ligar a favela ao bandido e coisas ruins. A minha ideia era fazer um contraponto desse ícone subversivo. E no lugar da arma, entra o instrumento, que é outro contraponto, para chocar um pouco.
Na primeira vez, eu fiz com um garoto com flauta (foto abaixo), ficou muito bom, mas precisava de mais quantidade para chamar a atenção. Tenho esses amigos que são músicos, a gente trocou umas ideias, marcou o dia e foi lá e fez. A principal ideia inicial era de chamar atenção fazendo o contraponto na questão do olhar. Quem olha de primeira vista, pensa que é bandido. Quando você olha de novo, tem uma outra perspectiva. É necessário olhar de novo para entender o que é. Hoje a gente vive nessa correria. A partir do momento que você tem essa percepção, que eu acho que é uma questão de sensibilidade, de olhar de novo para entender, você cria esse diálogo. Eu fiquei feliz com o trabalho em si, e com a repercussão mais ainda.
ANF – Justamente a respeito disso, como foi encarar essa enorme repercussão, entre meios nacionais e internacionais?
Foi uma surpresa e muito assustador. Eu vi o poder que a internet tem, pude sentir isso. Postei a foto e fui para um churrasco. Quando eu voltei, em questão de horas, já estava algo absurdo, chegaram muitas mensagens em todas as redes sociais, travou meu celular. Quando eu percebi, já tinha agência me ligando, já estavam marcando capa do “O Globo”, e você fica meio sem entender. Fui dormir umas 4 ou 5 horas da manhã naquele dia, porque era muita gente para responder, uma repercussão muito grande, muitos artistas repostando.
Fiquei uns 15 a 20 dias dando entrevistas todo dia. É assustador, mas é bom ver uma notícia boa se destacando no meio de tantas ruins, ainda mais se tratando do local sofrido de onde a gente vem. A gente trabalhou para isso e ver essa repercussão positiva nos deixa felizes.
Quando você vai amadurecendo, na fala, é muito bom também. Espero que a gente consiga inspirar mais pessoas a fazerem isso e a colocar a favela em um outro ponto de vista, falar coisas boas, e que elas tenham mais notoriedade na mídia do que as coisas ruins. Se a gente conseguir influenciar um pouco, dialogar, já é um bom trabalho. Levantando trocas de ideias, de informação, de mudança de perspectiva. Questões de racismo institucional, mas também o geográfico, que tem a questão do preconceito da favela, e botar isso num patamar diferente, é muito bom. Quanto mais projetos vierem, com essa pegada, isso é bom, gostaria de ver outras coisas, além da gente, tomando forma, espero que aconteça e até já está acontecendo.