a tolerância com os intolerantes,
a bondade com os maldosos.
E, por estranho que pareça,
sou grato a esses professores.”
Kahlil Gibran (1883 – 1931), poeta inglês.
Espero que esta cidade e este país estejam tomando o rumo da democracia, do diálogo e da tolêrancia. E sobre esta cidade, sobre a qual a poetisa americana Elizabeth Bishop, na década de 60, magistralmente, fez a seguinte observação: “O Rio de Janeiro não é uma cidade maravilhosa, mas um cenário maravilhoso para uma cidade”, como ela está? E o “Viva Rico”? E o General Cegueira? E o louco do Cesar Maia? E o cachaceiro do Marcelo Alencar? E o tupiniquin-presidente FHC? E o Comunidade Solitária? E as chacinas, continuam né? E Acari, Vigário Geral, Dona Marta, Borél e os demais guetos dessa terra brasilis, como vão? Ah, quantas perguntas, quantas interrogações, quanta vontade de estar aí…
Renovo-me a cada vez que lembro de você, com sua também ironica e intransigente forma de ver e de se relacionar com estes falsos democratas dessa cidade. Talvez você tenha tido mais sorte do que eu, porque você sempre se pautou por uma orientação fundamentada na ética espiritual, por um Deus que a tudo criou e que a Ele este universo pertence. Eu, ao contrário, sempre pautei-me pelas minhas torpes “certezas” da ética científica das ciências sociais e da militância das causas dos direitos humanos. Se errei em alguns momentos, foi porque não conseguia enxergar além dessa minha visão canhestra prático-teórica. Algumas vezes, fui feliz e até ousei desmistificar a “ética monetária” de alguns senhores amigos dos poderosos dessa terra explorada outrora por portugueses e agora por insensatos burgueses. Noutras fui um incauto e cai em minhas próprias armadilhas, mas frente a realidade que vivia no dia-a-dia da favela de Vigário Geral e nas demais que eu frequentava, não podia ter sido diferente. Eu precisava sim, ser intransigente, denunciador, “inadministravel” como bem observou meu homônimo Caio Fábio. Tinha a necessidade de ser mais rápido do que a tirana bala do fuzil AR15; e mesmo assim quantas barbaridades tive que presenciar. E valha-me Deus que você foi uma testemunha ocular dessa minha peregrinação, por ter sido um também peregrinador junto comigo contra essa pena de morte que só atinge pretos, pobres e favelados. Lembra-te, que juntos estávamos lutando contra a farsa da Operação Rio e também na defesa da tentativa política de implodirem este trabalho magnifico que é nossa Fábrica de Esperança?
Amigo e irmão André, sei que muitas vezes fui pré-julgado e preconceituosamente espezinhado por ter vindo de uma família humilde que vivia em favela. Muitos dos que fingiam estar ao meu lado, nos bastidores de seus pecados mentais, diziam que eu era um despreparado e um porra-louca. Se assim eles consideravam, lamento tê-los frustrado, pois este pobre cara de codinome Caio foi digno de milhares de aplausos e de alguns prêmios. Digo isso não como vaidade pessoal, mas como forma de lembrar que a incompetência é senhora e dona da insensatez e só é possível porque existe nesta cidade uma mesquinha cultura da indiferença, a qual reina neste mundo pervertido dos intelectuais encastelados ora nos governos, ora em ONGs. Se fui intransigente e arrogante é porque vivi – assim como os que não compactuam com a sacanagem – intensa e dolorosamente as seguintes cruas verdades: Quantos amigos de infância ainda fui obrigado a acompanhar o sepultamento após a chacina de Vigário Geral. Quantos armamentos pesados vi chegar em favelas. Quantas toneladas de drogas vi milhares de jovens comprarem para consumo somente nestes três últimos anos nas favelas. Quantos bilhões de doláres os governos roubaram da saúde e educação de milhões de inocentes crianças. Quantos velhinhos morreram a espera do misero salário mínimo do INSS. Talvez seja impossível, mas com certeza o somatório de tamanha injustiça para mim era e continua sendo inadmissível… Minhas denúncias quanto as continuadas chacinas, tortura e corrupção nas favelas respingaram na mais podre realidade existente em nossa cidade. As vezes fico imaginando: será que valeu a pena ter sacrificado minha própria vida e de minha família por uma cidade controlada por vermes e fascinoras homens? De que me valeram prêmios e reconhecimentos públicos se estou agora a mercê de uma terra que não me pertence, de uma cultura que não é a minha, de um povo que não fala minha lingua, de um clima frio e rigoroso? Se as coisas que gosto e se meus amigos estão todos distantes? Será mesmo que valeu a pena? Se não tive sequer o direito de me despedir do meu pai em seu sepultamento no dia 10 de julho? Se hoje não tenho nenhum bem material que possa dar o mínimo de tranquilidade e conforto as minhas duas lindas companheiras de exílio? Se minha esposa não pode sequer falar com seus pais e familiares por telefone devido ao alto custo da ligação internacional? Se não posso sair com minha filha para tomar um simples sorvete? Este papo de que o Caio foi um herói, para mim
é, desculpe a expressão, uma puta sacanagem.
As vezes, o que me consola, é o fato de ter feito alguns amigos de verdade, entre eles, meu amigo-pai-e-irmão Pastor Caio Fábio; com quem tentei por várias vezes falar por telefone, sem ter sucesso, depois que cheguei aqui nos EUA. Outras duas pessoas que se mostraram acima de qualquer interesse foram você e sua alegre e espirituosa mãe, Graça Fernandes. E é exatamente por isso que estou escrevendo-lhe esta carta. Para agradecer a vocês, do fundo do meu coração, por tudo que vocês fizeram por mim e por minhas duas coisas preciosas: Claudia e Maíra. Muito obrigado mesmo. Milhões de vezes obrigado. Minha vontade era poder estar aí só para dar-lhes um grande abraço, um carinhoso beijo e depois irmos juntos comer uma gostosa comida brasileira. Mas a distância é longa e a realidade torna esta vontade em algo impossível.