O DJ e eletricista Leonardo Nascimento dos Santos, de 26 anos, foi preso injustamente no dia 16 de janeiro de 2019 por ter sido reconhecido por Carla Cristina Rodrigues Santos como aquele que tinha assassinado seu filho, Matheus Lessa, estudante de psicologia de 22 anos, em uma tentativa de assalto a um mercado em Guaratiba no dia anterior.
No dia 15 de janeiro, de fato, dois jovens tinham tentado assaltar o mercado que pertence à família de Matheus, que ajudava a mãe e morreu para protegê-la quando viu que um dos assaltantes apontava para ela, que resistiu a entregar o dinheiro do caixa, e ia atirar. Uma denúncia anônima, porém, levou a Delegacia de Homicídios a prender o verdadeiro responsável pelo disparo, Yuri Gladstone, que confessou o crime e entregou o cúmplice.
O único traço físico em comum entre o inocente e o responsável por esse crime é a cor da pele. Fotos justapostas dos dois rapazes, que circularam por diversas redes sociais e pela mídia, mostram que são muito diferentes para ser confundidos. No entanto, como o próprio Leonardo reconheceu em diversos depoimentos dados à televisão e à imprensa, também não podemos medir o tamanho da dor e do estresse de Carla com a perda do filho. Nessas condições, não podemos nos espantar com seu engano. Mas devemos nos preocupar com a forma como procedeu a polícia, que colocou mais dois suspeitos brancos na sala em que são reunidos para o reconhecimento por testemunhas, como destacou o professor da FGV Thiago Bottino, ouvido pela equipe do Fantástico.
Em entrevista a esse programa dominical de entretenimento e informação da Rede Globo de televisão, o rapaz disse chorando ao repórter: “Ninguém merece passar por aquilo, não, cara!”. Mesmo dizendo também que não guarda mágoa das pessoas que o fizeram passar por uma experiência terrível, dá para perceber que “aquilo” não será fácil de esquecer: o rapaz conta chorando também que foi algemado na frente dos amigos que estavam no portão de sua casa e preso sem que pudesse explicar ao pai o que estava acontecendo.
O choro que vem aos olhos do rapaz quando lembra o que aconteceu pode nos dar uma medida do tamanho de sua dor e do trauma ao qual foi submetido. Foi atirado numa cela do presídio de Benfica, na qual conviveu por sete dias com 85 presos. Sempre com lágrimas nos olhos e voz embargada, Nascimento conta que “foi horrível”. Sua “fama” tinha chegado antes dele na cadeia, onde foi tratado como se fosse um monstro e tentou “suportar aquilo tudo calado”.
Mas o pai de Leonardo, convicto da inocência do filho, conseguiu obter evidências importantes para convencer o delegado de seu erro: vídeos que mostram o rapaz perto do condomínio onde mora com a família, bem longe do local do crime no momento em que foi cometido. Denúncias também ajudaram a polícia a chegar aos verdadeiros responsáveis pelo crime.
No final da noite do dia 23 de janeiro de 2019, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro foi liberado da Cadeia Pública José Frederico Marques, em Benfica, e abraçado com muita emoção pelos parentes e pelos amigos que o esperavam fora. Esse caso terminou com a ficha do rapaz voltando a ficar limpa, mas outros não tiveram ou não teriam a mesma sorte. Não podemos nos esquecer do drama que atingiu Rafael Braga.
Problema frequente, grave e pouco estudado
Casos como esse são muito mais frequentes do que deveriam. O ator e vendedor Vinícius Romão de Souza, que tinha a mesma idade de Leonardo na época, foi preso porque uma mulher o acusou de tê-la roubado no Méier. Vinícius passou mais de duas semanas na Cadeia Pública Juíza Patricia Accioly, em São Gonçalo, até ser solto com a prisão do verdadeiro responsável. Uma busca no Google basta para constatar essa triste realidade.
No site JusBrasil, por exemplo, encontramos alguns nos quais a vítima entrou com ação contra o Estado e pediu indenização. Diversos especialistas defendem a necessidade de uma compensação financeira para que se faça realmente justiça, mas os estragos psicológicos que faz a prisão, principalmente sobre alguém que não cometeu crime nenhum, podem ser irreparáveis.
O interesse pelos casos de prisão e/ou condenação indevidos ou injustificados tem aumentado nos últimos anos em diversos países do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1992 foi criado o Projeto Inocência, que usa exames de DNA para inocentar pessoas injustamente presas e lutar por mudanças no sistema de justiça criminal para evitar que novas injustiças aconteçam. Também existe um número cada vez maior de estudos analisando, por exemplo, a frequência e as causas dos erros judiciários. Mas foram feitos até agora poucos estudos sobre pessoas que saem das cadeias e dos presídios, principalmente aquelas que logo foram inocentadas da acusação.
Infelizmente, não encontrei estudos que tratem especificamente dos efeitos psicológicos da prisão sobre pessoas inocentes que ficaram presas por pouco tempo. E, no Brasil, temos de levar em consideração que o problema começa, muitas vezes, em prisões que são feitas sem condenação, o que somente se justificaria, de acordo com o texto da lei, quando um acusado coloca em risco o processo de apuração dos fatos. Porque teoricamente todo acusado deve ser tratado como inocente até que se prove o contrário.
Mas podemos nos basear, primeiramente, em depoimentos de quem vive ou viveu preso em nosso país e nos estudos feitos com pessoas que ficaram presas por anos antes de ser inocentadas, para preencher um pouco do silêncio de Leonardo sobre “aquilo tudo”. Num estudo feito por um estudante de pós-graduação e professores da UNISUAM, publicado em 2018 pela revista LexCult, podemos encontrar uma lista dos “problemas gravíssimos do sistema prisional brasileiro”, que inclui dentre muitos outros: superlotação, atendimento precário das necessidades básicas dos presos, desrespeito e violação de direitos, espancamentos, torturas, rebeliões, assassinatos, transmissão de doenças.
Mesmo que as condições na prisão sejam decentes, os inocentes presos vivem separados de seus parentes, deixam de conviver com seus companheiros e suas companheiras. Também podem perder empregos e oportunidades de trabalho, o que faz a pessoa se sentir sem perspectivas. Ficam deslocados do contexto em que viviam, do tempo, do espaço e do tecido social nos quais se situavam. Dependendo do tempo que passam como prisioneiros das grades de ferro, podem mudar vizinhos, presidentes, moedas, podem ter morrido entes queridos.
Nos depoimentos dados pelos que saíram das cadeiras, os homens disseram que se sentiam estranhos, com dificuldade para retomar as relações familiares e amorosas, tentando absorver o impacto das perdas. Aqueles que foram entrevistados por pesquisadores mostraram ter grande dificuldade para identificar e descrever os problemas emocionais que adquiriram. Sentem vergonha ou culpa. Evitam falar no assunto.
Alguns voltam nervosos para suas casas, outros ficam frios e distantes com os parentes. Além disso, a temporada no inferno afeta também o funcionamento do cérebro e a maneira de agir. E o problema é que comportamentos que na cadeia garantem a sobrevivência fora dela fazem da pessoa uma desajustada. A experiência é tão sofrida e traumática, que afeta até mesmo quem nunca tinha passado por nenhum problema psicológico ou psiquiátrico antes de passar pela cadeia.
Por menor que seja o tempo que passem, podem ficar estigmatizados: alguém pode não saber que a pessoa foi inocentada ou não acreditar na inocência e seguir castigando de alguma forma a vítima do engano. Afinal, ela foi exposta e condenada, às vezes em rede nacional, antes de ser liberta. E as notícias que nos dizem que não era bem assim o que aconteceu costumam fazer menos barulho do que as que nos alarmaram contra alguma coisa ou contra alguém. Parte dos que ficaram presos por engano por anos acaba desenvolvendo problemas mentais muitas vezes graves: depressão, ansiedade, pânico, psicose paranoica, dependência de álcool, drogas ou ambos.
Negro é a cor mais quente
Segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça brasileiro, de 2000 a 2014 o que se chama de taxa de aprisionamento aumentou nada menos que 119%. Em 2000, era de 137 presos a cada 100 mil habitantes; em 2014, era de 299,7/100 mil habitantes. Um ritmo assustador que, em caso de se manter, gera projeções de tirar o fôlego: em 2022 haveria no Brasil 1 milhão de pessoas presas. E em 2075, daqui a pouco mais de 50 anos, pelo menos um em cada dez habitantes do país estaria na cadeia.
Em 2014, a população carcerária era de 726.612 presos no país, a terceira do mundo em termos absolutos. Em primeiro lugar nesse ranking tenebroso ficam os Estados Unidos da América, que então tinha 2.145.100 pessoas na prisão contra 318.600.000 habitantes. Já em segundo vem a China, com 1.649.804, sendo que sua população era então composta por 1.364.000.000 habitantes, o que faz a situação brasileira ser proporcionalmente pior. E nossa população carcerária é formada principalmente por negros: de acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, em 2015 representávamos 64% do total de “pessoas privadas de liberdade”, embora representássemos 53% da população brasileira com mais de 18 anos.
Para nós, que somos negros e pobres como Leonardo Nascimento e Vinícius Romão, dentre muitos outros, o buraco é sempre mais fundo. Conforme podemos observar, por exemplo, no Atlas da Violência 2018, publicado anualmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), continuamos sendo as vítimas preferenciais de homicídios, intervenções policiais violentas, prisões precipitadas e injustificáveis. Se todos nós crescemos temendo abusos ou excessos de policiais no exercício de suas funções, inocentes que foram presos estão condenados a ter como companheiras do medo uma lembrança extremamente amarga e uma dor difícil de colocar em palavras.