Um morro livre do tráfico, mas não da tensão

Repórter passa a noite na favela e registra comportamento apreensivo de PMs e moradores

Um cheiro forte de esgoto avançava no fim da tarde da terça-feira passada, tomando conta dos becos na parte baixa do Morro Dona Marta. Um odor insuportável, resultado de um dia quente na cidade do Rio e de falta de saneamento básico na comunidade com cerca de dez mil habitantes. Eram 19h do dia 23, véspera dos festejos de Natal. Enquanto caminho pelos becos em direção ao alto da favela, encontro muita criança brincando nas vielas. Não há sinal de traficantes, de venda de drogas, e a única tensão fica por conta dos jovens recrutas agora responsáveis pelo policiamento do morro.

Resolvo seguir um grupo de oito policiais, todos jovens, a maioria do interior do estado. Parecem ignorar todos os anúncios oficiais de que o tráfico acabou na comunidade. Armados com fuzis e pistolas, protegidos por coletes à prova de balas, aos poucos os recrutas vão ocupando pontos na subida do morro com se estivessem entrando num campo de batalha.

A tensão deles contamina. Passo a olhar os becos escuros com desconfiança. Lembro do meu colega Tim Lopes, da TV Globo, morto por traficantes no Complexo do Alemão, quando fazia uma reportagem especial. Uma oficial do 2º BPM (Botafogo) acompanha o grupo. Os moradores no caminho se limitam a responder ao meu cumprimento. Nenhum deles conversa com os policiais, o que me dá a noção exata de que o morro está dividido entre a desconfiança dos moradores e a tensão dos recrutas.

Tento quebrar o gelo. Reúno um grupo de moradores, me apresento, explico que estou fazendo um reportagem. Todos estão próximos, escutam com atenção enquanto vou explicando o motivo de minha presença: fazer uma reportagem dominical para O GLOBO. Convido o grupo para uma fotografia ao lado dos policiais. Em segundos o grupo se afasta. Um rapaz, olhando na minha direção faz um gesto leve de negativa com a cabeça.

O Dona Marta tem 1.910 domicílios e 75 anos de existência. Desde o início da ocupação pela PM, os moradores perderam o acesso à internet, não têm mais TV a cabo(o "gatonet" foi suspenso) e, no Natal, o tradicional baile foi proibido, Ninguém gostou.

Passam das 3h de quarta-feira, dia 24. Estou cansado. Vou dormir na creche. O sono demora, mas pelo menos não há mosquito. Acordo às 5h. Como à noite, a visão do amanhecer lá no alto do morro é muito bonita. Aos poucos, o sol vai iluminando a encosta do Cristo Redentor até tingir de laranja prédios e a própria Lagoa Rodrigo de Freitas. A Zona Sul está iluminada. Vou embora torcendo pelos moradores.

Fonte: Jornal O GLOBO – Por Antônio Werneck – 28 de dezembro de 2008 – Rio – Página 15