“Vi ontem um bicho na imundície do pátio catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade.”

A lírica do poeta Manuel Bandeira, além de tratar de uma diversidade de temas (morte, amor, solidão etc..), enfatiza com veemência vários problemas sociais, denunciando situações de opressão, miséria e violência. Assim o faz, em sua poesia, empregando muitas vezes características humanas a outros animais.

De fato, há muitos bichos na poesia do poeta pernambucano, desde o lírico “Porquinho da Índia”, passando pelo “Boi morto”, ao paródico “Os sapos”. Mas é na sua obra O Bicho que Manuel Bandeira dá um destaque especial às mazelas sociais do país, de uma forma muito peculiar: o não-humano não se antropoformiza, mas é o humano que se transforma em besta. Nesta perspectiva, o poema, datado de 1947, nunca foi tão condizente com o cenário atual do país.

Com um breve passeio pela literatura, compreender-se-á que abordagens sobre os problemas sociais não se restringem unicamente ao mencionado poeta, a preocupação é latente nas obras de diversos outros visionários: em Vidas secas, de Graciliano Ramos; em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; em Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Ou seja, a literatura já se debruçava para situação gravíssima em que se encontrava, e, ainda, encontra-se a maioria dos humanos.

Tem sido consensual entre pesquisadores que crises econômicas graves estimulam o aumento da população sem emprego e moradia induzida a ocupar calçadas, viadutos e praças. Isso ocorre principalmente num momento em que as políticas de promoção social ou não têm sido prioridades ou são inexistentes. Esse contingenciamento contribui para que, cada vez mais, vejamos bichos nas imundícies dos pátios.

Um país que tem como um dos fundamentos constitucionais a dignidade da pessoa humana, encontra-se abatido por crises econômicas e políticas públicas inconstantes, com mais de 13 milhões de desempregados e 54,8 milhões de cidadãos dispondo de R$ 406 ou menos mensais. Além disso, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2016), estima-se cerca de 102 mil pessoas em situação de rua. O que tende a aumentar com as reformas: trabalhista (já aprovada) e da previdência, que tramita no Legislativo Federal. Veremos bichos na imundície do pátio!

Outro fator que deveria ser preocupante é o crescimento assustador de outros animais que também se encontram em situação de rua. Segundo a Organização Mundial da Saúde, só no Brasil existem mais de 30 milhões de animais (não-humanos) abandonados, entre 10 milhões de gatos e 20 milhões de cães. Estima-se que, nos grandes centros, para cada cinco habitantes há um cachorro. Destes, 10 por cento estão abandonados.

Na Bahia, o descaso é gritante! Tem sido difícil andar pelas ruas da capital e não encontrar, pelo menos, um cachorro abandonado. Sim, em Salvador! Na capital dos irmãos, protetores dos animais, Marcell e Marcelle Moraes, Deputado Estadual e Vereadora respectivamente, já passam de 100 mil cães em situação de rua. Problema este que tende a piorar, uma vez que as questões referentes ao Meio Ambiente têm sido tratadas com desdém e interesses capitais, pelos animais racionais que gerem o país. Nem mesmo os carnívoros devoram-se, uns aos outros, como o humano devora o seu semelhante. Animais que, sem conhecerem, empiricamente, o frio e as chuvas, rastejam camuflados e protegidos em seus luxuosos e confortáveis gabinetes, e, como peçonhentos, germinam detritos nocivos dificultando a sobrevivência de humanos e não-humanos marginalizados.

Destarte, como se não bastasse catar migalhas entre os detritos, hoje, animais racionais, zoomorfizados e invisíveis à sociedade, aproximando-se da condição de besta, disputam espaços e comidas com outros bichos, não-humanos: cães e gatos (não menos invisíveis). Todos na imundície do pátio! Os não-humanos, por sua vez, mesmo desprovidos da razão que humaniza os outros seres, comumente, não disputam e sim dividem espaços e migalhas, além de serem verdadeiros companheiros nas ruas, viadutos, calçadas e praças.

* Matéria publicada no Jornal A Voz da Favela, edição de julho 2019