Vera Malaguti Batista

 

Os abomináveis acontecimentos que culminaram com a “caçada” filmada de dois jovens que fugiam pelas encostas próximas à favela da Coréia propiciaram uma cobertura jornalística que marcará o começo do processo de criminalização das tias. No caso, o maior jornal do Rio (aquele que vai “além do cidadão Kane”) tratava de trabalhar o caso na perspectiva binária de sempre: minimizar a truculência policial e demonizar o varejo de drogas. O efeito dessa configuração é o de sempre na nossa história: índices altíssimos de execuções policiais que serão justificadas à la Capitão Nascimento. Não há outro jeito, seria o bordão inculcador do filme, da sociologia que o inspira e também da cobertura jornalística.

 

Nessa matéria reproduzia-se uma possível investigação policial em torno da contabilidade da firma, que dizia respeito ao dinheirinho das tias, senhoras moradoras de favelas que entre outras coisas sobrevivem entregando marmitas de refeições para os trabalhadores. Sobre essa atividade informal, imediatamente recaiu o olhar demonizador que vai anteceder a criminalização e a barbarização das populações faveladas. Quem conhece um pouco da história do povo brasileiro, sabe o papel das mulheres na África. Nós, que somos muito mais africanos do que ibéricos, descendemos de culturas matrilineares, onde o centro de referência é o feminino. Daí vêm os grandes equívocos da sociologia, da psicologia e do serviço social que buscam uma inexistente figura paterna, que vai colocar a família afro-descendente sempre na falta: falta de pai, falta de lei.

 

O importante aqui é entender a tia na favela como uma entidade: é em torno dela que vai se estabelecer uma sociabilidade afetiva, uma organização comunitária que não esmorece nem diante da truculência exterminadora legitimada pelos meios de comunicação hegemônicos. Em seguida, surgem as matérias sobre as “mulheres no tráfico”, que envolvem com o mesmo manto desqualificador situações diversas como a solidariedade com um menino ferido, o fornecimento de comida, o abrigamento e o reconhecimento humano aos envolvidos naquela atividade econômica barbarizada pela brutal e enlouquecida política criminal de drogas imposta ao mundo pelos Estados Unidos.

 

Creio que o efeito dessa polissemia de discursos vai ser o aumento da criminalização feminina, o que já ocorre. Se olharmos para o Rio de Janeiro do século XIX veremos que houve um outro momento da história em que isso ocorreu: em torno das escravas libertas que vendiam angu, organizou-se também uma sociabilidade afetiva que transformava aqueles pontos de encontro em apoio para fugas e partida para os quilombos. Naquele momento, como se quer agora, as tias foram criminalizadas, processadas e presas. Parece que ainda temos como referência para a Segurança Pública a demanda por ordem do período escravocrata*.

 
 
 
 

*Quem quiser se aprofundar nessas histórias não deixe de ler Ajustando o foco das lentes: um novo olhar dobre a organização das
famílias no Brasil
, de Gizlene Neder; Zungu: rumor de muitas vozes,
de Carlos Eugênio Líbano Soares; e Sexualidade e gênero no imaginário brasileiro, de Helena Bocayuva.