Querido diário:

 

Outro dia saí apressado e esqueci a carteira no bolso da outra bermuda – coisa que não me acontece há muitas décadas é andar sem documentos. A simples presença da identidade no bolso é garantia de viajar no ônibus sem pagar passagem e de entrar em alguns lugares gratuitamente ou com meio ingresso. Enquanto seguia caminho lembrava dos tempos em que não portar carteira de identidade era meio caminho para a delegacia de polícia. Valia carteira de estudante também, mas levantava suspeitas várias, de maconheiro a subversivo. Era uma época em que o sujeito “dançava” ou “caía”, a depender do seu engajamento com o mundo ou das drogas, ou da militância política. Tive amigos nos dois ambientes, alguns deles vítimas de um lado ou outro, e certa noite, caminhando com um ex-colega de ginásio pelo Largo do Machado, fomos parados por um policial civil. Entreguei a carteira de repórter do Correio da Manhã e ele a de universitário, que foi cuidadosamente examinada. Ao devolver, o policial perguntou a mim: “Ele tem cara de que?”, ao que respondi de imediato: “De estudante”. E ele: “Não, tem cara de subversivo”. Por sorte, estava de bom humor e nos liberou sem mais comentários, mas eram frequentes casos em que o camburão preto e branco da Civil ou uma Veraneio escura da polícia semiclandestina chegavam de repente e encerravam a abordagem da pior forma, levando o suspeito, ou os suspeitos. Muitas vezes não voltavam nem os corpos, como no caso de Fernando, o pai do presidente da OAB Felipe de Santa Cruz.

Naquele tempo, existia um instrumento legal que tipificava a “vadiagem” e quem não exibisse carteira de trabalho assinada numa blitz ia em cana. E havia blitz em toda parte, a pretexto de qualquer ou sem pretexto algum. Houve uma noite no antigo Lamas em que um caminhão de soldados estacionou na porta e eles andaram de mesa em mesa vistoriando documentos, armados de metralhadoras. Naqueles momentos, se o cidadão não estivesse com a identidade ou a carteira de trabalho assinada estava lascado, mas o fato de não levarem ninguém nos convenceu de que tinha sido apenas exibição, força e prepotência. Como hoje voltou a acontecer, a polícia chegava e interrompia peças de teatro, exibição de filmes, reuniões, festas de escritório, enfim tudo o que destoasse da quietude fúnebre que os militares poderosos apreciavam e impunham ao país. E acredite: ontem, como hoje, muita gente concordava e aplaudia. Foram necessários muitos anos para a opinião pública se sentir afetada pela truculência dos porões onde torturavam-se e matavam-se muitos filhos da classe média envolvidos ou não em luta armada, assalto a banco e sequestros de embaixadores. À medida que a violência se tornou padrão de operação do estado policial/militar e se ampliou, a sociedade passou a testemunhar eventos e a ouvir relatos arrepiantes de familiares, amigos, vizinhos e colegas. Pouco a pouco, a cumplicidade venceu a paranoia de falar e ser dedurado por quem ouvia.

Tudo isso me veio à memória enquanto ia para a Feira de São Cristóvão me confraternizar com a culinária e a cultura nordestinas, que reputo as mais ricas do país. Ainda no ponto do ônibus em Copacabana pedi acesso pela porta traseira e o motorista acedeu sem me perguntar se sou aposentado ou se tenho carteira de trabalho assinada. Na roleta da feira, passei sem mostrar nada além das minhas barbas brancas e minhas rugas de expressão da verdade. Constatei, satisfeito, o valor da palavra de um homem comum diante do semelhante. Não perante a polícia no acesso a uma favela ou numa blitz à entrada do túnel, onde palavra nenhuma vale a humilhação da bofetada ou do esculacho que nunca sai de moda no tratamento da população pobre negra periférica do Brasil inteiro. Ouvi na feira o relato da senhora moradora dos arredores dominados pela milícia em São Gonçalo de que quando chega de carro o motorista tem de baixar os vidros, acender a luz interna, desligar faróis e ter armas pesadas apontadas para seu rosto, na ida e na volta.

A pergunta que me faço é até quando suportaremos tanto desmando, tanta violência, tantos velórios e sepultamentos de inocentes, sobretudo jovens? A realidade atual não pode repetir a da ditadura militar, porque são outros os tempos e os termos de convivência, mesmo conflagrada como agora. A classe média não deve esperar ser atingida pelo arbítrio, o estado policial já está no seu computador, na sua rua, na casa ou no apartamento ao lado. O Brasil que sempre quisemos não é o de um capitão grosseiro como Bolsonaro foi com o presidente da OAB, tripudiando da tragédia que vitimou seu pai no começo dos anos 1970. Não é o país da bala perdida, do tiro na cabecinha, da arminha, da intolerância e do ódio. Desejamos o país da palavra, do diálogo, do entendimento e da aceitação de que não podemos ser a oitava economia do mundo ao mesmo tempo em que cem pessoas reúnem 90 por cento da riqueza que se produz nesta terra.